Sunday, June 14, 2020

Precisar de outra têmpera

Ao menos que seja uma terapia para fazer render talentos com a vantagem de desviar a fantasia de se possuir uma bênção única e original. Aqui chamada, curvo, inemocionando os olhos, nem sempre afinal das almas exatos poros. Falo de outra coisa, claro, não nomeio. Falo
do que rodeio por interposto interesse, não me lerão a gastar mais nenhuma palavra com duvidoso ouro, lapso momentâneo, além, aquém, o que tem por sinónimo técnico a usura. Toda a euforia metida para dentro, convexa. Na realidade, reservada - apesar da suspeita de não se referir a isso Rimbaud, quando, a propósito de ter dado cores, tão justas quanto arbitrárias, a cada uma das vogais, se vangloriava, em “A Alquimia do Verbo”, “de inventar um verbo acessível, um dia ou outro, a todos os sentidos”; sem mais: je reservais la traduction. Colocava a tradução em reserva. Un jour ou l’autre, um  dia ou outro, indica a possibilidade de haver dias felizes, como no soneto em causa, “Les Voyelles”, para se dizer das cores as “nascenças latentes” (je dirai quelque jour vos naissances latentes).
Calhará, talvez, num qualquer dia, haver uma eflorescência selvagem onde dispare tudo gloriosamente, e aí se libertem os vapores da tradução que se pôs de reserva[1], e venha a famosa desregração dos sentidos projetar-nos para partes mais inteiras ou mais abertas.
Só que desconfio ainda de perceber o que Rimbaud quis dizer por Je réservais la traduction[i]. É, segundo os especialistas, a única ocorrência da palavra “tradução” em toda a obra do poeta prematuro vidente. Quis dizer apenas “abstinha-me de traduzir,” “punha a tradução de parte”?  mas aí talvez haja mais uma razão para martelar os signos à espera que eles se soltem, ao mesmo tempo que se evita o mais prolongadamente possível a intromissão na sua desordem. É-me mais afim a ideia de “suspendia a tradução”, até porque parece que para Rimbaud estava em causa um “estudo” ou “exercício” (ce fut d’abord un étude) – prolongar esse momento em que se suspende a equivalência de uma coisa a outra, e entidades várias se prontificam para exame.
 “Reservei a tradução”, disse Cesariny na sua assombrosamente pessoal Uma Cerveja no Inferno - como quem não só reinventa o verbo poético a cada dia como ainda fica com a opção sobre quaisquer futuros direitos mundiais de tradução. É precisa uma forte inclinação para a vidência, com bastante impudor, e até onde, até que nível de susto, displicência, irrisão ou violência.
Pelo instante de preparação para a tarefa, por mim receio prejudicar-me a embriaguez: forja da soberba, sustento brutalmente manuseado da poesia.
Nem que aplique ao coração um bate-estacas serei por força, se não digna, con-vencida capaz para abrir este tesouro.


[1] A ideia de reserva com toda a sua polissemia parece-me crucial à tradução. No sentido de sustento, comida e bebida, retém-se o depósito, o amadurecimento, a colheita selecta. No sentido de temperamento, realça-se a timidez e prudência. No sentido de viagem ou espetáculo, implica a antecipação, mas também a exclusividade, que parece aliás contrária ao propósito –
caiu-me a ficha do Espírito Santo quando em tempos participei num encontro de “jovens criadores”. Era em Nápoles, não havia privacidade, mas os autocarros destinados à deslocação dos participantes diziam Riservata. Eu já era tradutora e tinha feito alguns trabalhos de interpretação e nessas pequenas viagens de Riservata dei por mim num estado total de eletricidade de veículo condutor, por a minha vocação e as línguas que conhecia me permitirem colocar os restantes participantes de várias proveniências em comunicação com o nosso motorista. Pensava em mim como puro pbx, alinhando as linhas e as línguas. E foi também nesse festival que me achei pensativamente incomunicada com certos pares poetas, que nas privadas conversas de copos do lounge do hotel questionavam a opção de terem os seus poemas lidos ou escritos em tradução, achando a poesia sustentada no som e na materialidade do nativo.


[i] Riservata

Entre vocês e eu na aflitiva
via rápida dos artistas há
um baldio de línguas que se
tresmalham incandescem e internamente
queimam os ouvidos: pares poetas eu
lamento discordar mas
sendo
a poesia
o que perde a tradução
há então mais importantes coisas
que guardar e eu não vejo forma
outra de sair deste férvido ruído
senão o esforço estrénuo e distendido
de diminuir a extática da expressão
para salvar, posto o atrito,
a transmissão.

Com que temeridade – górdio
nó desta questão – nos dispomos
ceder entre línguas a arder.
Se escrever vale de outro modo
se por hipótese se deve
testar a sondagem complacente
rasando inclusive a cilada

do comum e do corrente?

Pares poetas eu lamento discordar
mas verso é arco de alvos desiguais:
ter em vista o chegarmos a outrem
ou escudar a perda que se arrisca:
a mim é o primeiro que convém.

E mesmo assim no átrio do hotel
quando deitamos enfim as flechas
no parapeito do balcão – rondando
forasteiros num refúgio as bebidas
e as pontas de vidas e cigarros
será jamais possível emalhar as nossas
línguas sem cair no brejeiro trocadilho
ou lenocínio da força de expressão?
e vão tomar-me por aqui onde estou ou
por aquilo que em mim miram pode haver
uma outra via de sair a via
de mudar-nos e folgar quando falharmos
a equívoca vocação de sermos únicos?

Embaraça-me, pares poetas, discordar
de vossa arraigada opinião
mas agradeço todavia
os ínvios ramais do estaleiro
a mesmo que inquinada comunhão
nestes médio-territórios aturdidos
como um lounge ou uma carreira
onde malentendidos derivam
passageiros.

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