Tuesday, June 13, 2023

[na cabeça do sonho:] amor e remorso

 Afinal éramos nós outra vez, como nunca fomos. Passáramos da correspondência aos atos de intimidade, clandestinos, provando a chama produzida entre contrários, da admiração e exaspero, recusando a ideia de amor exceto por alguns segundos pós-climáticos. Pelo meio, uma casa, com antigos namorados e críticos literários, que nem sabiam que minimamente nos relacionávamos. Como em Milfontes, um lugar onde se comia com escoras para o mar. O sexo não funcionava, eu queria ir tomar banho e vagamente voltar àquele com quem perdi a virgindade, amando desta vez o ponto de acreditar que seria para sempre.  Aqueles olhos tinham uma bondade coruscante debaixo das lentes. Mas mantinha contigo o que era semi-sujo, semi-claro, encostávamo-nos um ao outro, saturados, ébrios, cépticos, frouxos.

[na cabeça do sonho:] comer os pobres

 Eu tinha achado um namorado. Giro, inteligente, pé rapado, malandro, fugido, mas bom. Não tinha onde cair morto mas também não me caía em cima do regaço. A dada altura desapareceu, depois disse que tinha adquirido uma casa para nós - fomos ver, era um loft, tipo algo que fora uma casa das máquinas, com tijolos vermelhos, janelas amplas. Depois acordou-me e disse que não sabia dos papéis da casa, que por isso lha iam tirar, mas que ia resistir. Não sei para onde fomos, eu e A. Ele ficou. Mandaram alguém para o debicar vivo. Acordou com dores, viu o homúnculo que o mordia e lhe comera parcialmente a tíbia e a virilha. Ferrado nele, atirou-lhe um pedaço da sua carne para cima, depois escapuliu-se. 

Monday, June 12, 2023

Tudo o que tem cabeça pode ser parado de a ter (III)

Talvez criança seja, como disse Helène Cixous também a propósito de Alice, uma "espécie imaginária inventada por um certo tipo de literatura psicológica, não menos do que 'menina' um "um complexo fantasma da invenção de Carroll" (234). Mas importa também o que ressaltou Robert M. Polhemus, sobre Carroll ter movido um dos grupos mais marginalizados da História, a criança, para o centro da existência - e da literatura, como comprova este ser pelo menos o primeiro livro para crianças contemplado por um ciclo de Grandes Obras Universais. Mais importa que essa criança seja uma menina, abrindo-se a este género o mundo de aventuras. Na verdade, Alice, como as protagonistas de The Goblin Market ou Speaking Likenesses de Christina Rossetti, surge em contraponto e às vezes reversibilidade com a figura da Rainha, que tudo possui, e que dificilmente podemos separar de Vitória, cujo reinado (1837-1902) foi praticamente co-extensivo da vida do escritor (1832-1898) e que, aliás, terá adorado Alice no País das Maravilhas. Podemos dizer que, independentemente de todos os paradoxos aliados à questão do império e do despotismo, o período vitoriano inaugurou o "girl power"? Ou que nisto haja que pesar bem a questão de "quem tem o poder"?

É também Helène Cixous que nota a singularidade de Alice ser escrita por outrem e, no entanto, pegar no lápis para subverter o memorando do rei, porventura uma marca metaliterária do subtexto corrosivo do palimpsesto, ou até psicanalítico incesto, de que se constrói e desconstrói Alice. Na verdade, Hélène Cisoux é uma entre muitos críticos e artistas que notam a sujeição e derrisão de Alice a várias estruturas opressivas* - assombrando desde o corpo da menina ao social e ao político (um exemplo notável é "Uma Alice" do realizador checo Jan Svankmajer, 1987). "A ficção aliciana aborda a crise da autoridade na vida moderna, sentindo-se os leitores compelidos a resolvê-la" (Polhemus, p. 604). Hipersensível a quem come e a quem é comido, são vários os momentos em que Alice acusa o poder e a exploração de outros bens e seres (sem deixar de ser lembrada, aqui e ali, de ela própria os praticar). É aqui que entra Alice a ativista - não que a de Carroll seja propriamente uma, mas ainda assim pela-se, já o disse, por golpes de estado. 

Em todo o caso, olhar para Alice com os olhos de quem é hoje a A. Gato, a filha que nomeámos na esteira da que caiu pela toca do coelho (full disclosure - o pai chama-se Pedro Coelho) faz-me querer rever o texto traduzido especialmente nessas partes que hoje podem associar-se às alterações climáticas, suas causas e combates. Por exemplo, a corrida eleitoral com efeitos de secagem liderada pela ave extinta Dodó (que se afiança ser outro pun do gago Dodgson). Ou a aparente distração das presas "ostrinhas" em que consiste o ardil da Morsa para que ela e o Carpinteiro, seu partner-in-crime, chegados a uma orla deserta aparentemente esvaziada de outros autóctones e testemunhas, possam papá-las todas até não sobrar nenhuma: falar de muitos tópicos, incluindo "why the sea is boiling hot." O nonsense de outrora torna-se o absurdo com que vivemos agora. Mas se porventura o matemático Dodgson estava longe de calcular o aquecimento dos mares, há realmente vários sinais de que a exploração subterráquea de Alice destapa o aterro provocado por ambições imperialistas, coloniais e extrativas. Movida por estas intuições fui googlar e claro que encontrei quem já as tivesse tido. Há um artigo que se debruça só sobre a balada da Morsa e do Carpinteiro, "Natural Selection and Colonialism in Carroll's 'The Walrus and the Carpenter'" de Rebecca McNelly. Face às ideias da autora de que os versos perversos desta história glutona encapsulam todo um jugo transatlântico feito pelos senhores de sapatos e barcos, selado pelo lacre de correspondências reais, à custa de injustiças sobre os "simplórios" (significado slang de "cabbages", ainda que eu veja hoje no verso também uma alusão aos "counselors and kings" do episódio de Job ... e de Bartleby), até a ilustração de Tenniel ganhou novos contornos para mim. Comecei a ver a personagem agachada mais parecida com um missionário do que com um carpinteiro. Acho agora que devia rever uma tradução que há vinte e cinco anos fiz quando era uma pessoa de outras manhãs, com certa ilusão de que no nonsense não importaria o que fosse que se dissesse:



* Ainda que Cixous note também que no final de contas, "nobody wins, nobody keeps anything, but something happens and the text is produced" (234); a roca por que disputam Tweedledee e Tweedledum é o derrisório que marca a propriedade

Sunday, June 11, 2023

Tudo o que tem cabeça pode ser parado de a ter (II)

 A tradução tem o problema de Alice, querer que as palavras tenham um significado - ou, vá lá, dois, três - , com a taxa acrescida de pretender ainda vincular esse(s) significado(s) ao de um emissor outro, anterior, que para isso utilizou um sistema linguístico mais ou menos alheio, ou resistente, ao da convenção da sua tradutora. Uma maneira insatisfatória de lidar com o problema é o da redução a uma única correspondência. Foi o que fiz na minha primeira tradução de Alice, "tudo o que tivesse cabeça podia ser decapitado". Continuo sem encontrar, todavia, melhor solução, para além de uma que era o horror de Haroldo de Campos (pode-se fazer tudo menos explicar a anedota), "tudo o que tivesse cabeça podia ser separado, ou ser parado, de a ter", o de outra, "tudo o que tivesse cabeça podia ser privado de a ter" que talvez tivesse o mérito de recuperar um sentido esquecido (como em "os privados do rei") mas dificilmente poderia ter uso, e graça, para um leitor infantil ou sequer um adulto pouco dado a oitocentismos. 

Já no passo que citei sobre o tempo, usei de uma outra estratégia, mais paradoxal e eventualmente mais próxima da capacidade generativa do nonsense: não achando maneira de replicar exatamente a personificação do tempo pelo emissor, porventura insinuando ser o tempo também um mestre humano - "If you knew Time as well as I do," said the Hatter, "you wouldn't talk about wasting it. It's him." - achei uma forma dentro do meu sistema de utilizar os jogos comuns em Alice de ambiguidade, polissemia e falhas de endereçamento: "— Se conhecesses o Tempo tão bem como eu, não falavas dele. — disse o Chapeleiro. — Falavas com ele." Mais atreita à minha intuição de estar em causa uma correlação entre linguagem e gestão do tempo, a minha opção tem, porém, menos nonsense. Em wasting it, somos surpreendidos, porque mais do que lamentar o desperdício do tempo, há que lamentar como tratamos o que se desperdiça. 

Já sobre o espaço, encontro outro foco de interesse na questão do nonsense. Passada a Casa do Outro Lado do Espelho que, embora às avessas, configura um espaço familiar, Alice traça uma panorâmica, antes de se aventurar, como Huclkeberry Finn, pelo território: 

«É muito parecido com aprender geografia», pensou  Alice, e pôs-se em bicos de pés na esperança de poder ver mais longe. «Rios principais: não há. Montanhas principais: encontro-me no cimo da única que existe, mas acho que não tem nome. Cidades principais… mas o que são aquelas criaturas ali em baixo a fazer mel?" 

Alice procede por ali por caminhos que se revoltam e voltam sobre si, bem como por setas que apontam para direções contrárias, algumas inesperadas e outras arriscadas, mas talvez nenhuma inútil ou inconsequente.  Um mapa da mente de uma criança, escreveu Barrie, criador de Peter Pan e da Terra do Nunca, "tem linhas aos ziguezagues" onde se misturam os elementos da fantasia, com gnomos e recifes de corais e casas em ruínas e princesas de seis irmãos e velhinhas de nariz adunco, mas também o da vida rotineira, de normas sociais e de aprendizado - é, como o de Alice, torcido como a rosca de um saca-rolhas ou tortuoso como a cauda de um rato. O nonsense permite uma interrupção dessa desorientação, provocado pelo desfazamento entre o mundo da psique e o dos marcos do espaço conducentes à socialização e à contextualização. Permite a descida direta às antípodas - ou aos antipatas - e, no limite, o esvaziamento do mundo, como em A Caça ao Snark, cujo mapa adquirido pelo comandante apenas mostra o mar, sem pontos conspícuos nem coordenadas, o que a tripulação aplaude porque estas "são apenas signos convencionais" e

outros mapas são feitios, com pontões e baixios

mas há que agradecer ao nosso bom comandante

(dizia a tripulação) que nos comprou o melhor:

um vazio perfeito e constante.

Em Alice não temos o esvaziamento total, aliás muitas vezes o seu submundo ou é atulhado ou é especular, às vezes até especulativo do mundo conhecido, mas há o momento em que através de uma clareira se chega ao bosque denso onde nada tem nome e se permite um encontro aparentemente pleno entre a menina e o fauno. Dizia-me o Rui Costa:

"porque é que não podemos amar a partir do zero e temos que levar sempre a nossa história (“por favor, pago-te o café. não me contes a história da tua vida.”)? porque é que temos que ser tão cada vez mais pesados? alice pode querer saturar-se, sim, de rastas e recicladores, para um dia acordar vazia. ou pode pensar que deve esvaziar o mundo. mas esvaziar o mundo de quê? (...) criar um mundo (esvaziado mas com tudo o que o mundo agora tem) em que o camarão fosse usado como chuveiro e o chuveiro fosse comido. em que a paula rego inspirasse um grupo de seguidores canónicos, que mediam as suas proporções para reproduzir as regras de ouro da paula? uuuh isto é que era a desbunda total, até enlouquecer deus. deus aparecia, de olheiras fundas, a dizer: que fazeis que me complicativais a criação? temos umas contas a ajustar com deus, non te parece? vamos ser moços e moças como debe ser ou vamos complicativar deus? eu respondo. vamos…pois. vamos dar educação aos nossos filhos dos outros ou vamos dizer-lhes nascestes fodeste-vos gozai-vos uns aos outros e esqueceitai-vos de tudo o que o pai vos ensimesnou? vamos…vamos. a alice é uma papoila, não te esqueças disso. uma papoila não é um animal qualquer [titular]. é de-veluda colérica, contraceptivamente falando. a cidade carece de raspanetes, de caresses. lá fora estriqam anjos, assoberbados pelos silvestres. roem maçãs de rosto e sabatinam os rapitadores das asas. como se falassem. como se mungissem. lá fora-fora os governos estaduais e municipais, que são os irmaes das redes de ensino. panelas e rosquilhas de ferro como uma pêra que desce. atropeladores de porcos, estrugindo música, o regimento com os cinco dedos espalmados. atravessa a rua e pára na calçada oposta. u love. quando a neve macia e fofa cobriu-lhe completamente as costas."

Uma sugestão de poder esvaziar-se o mundo pelo nonsense é-nos dada pelos trocadilhos criados a partir do verbo to draw, designadamente no episódio do chá dos loucos, em que se conta a história de Elsie, Lacie e Tillie, cujos nomes aludem às três irmãs Liddell, no fundo de um poço dedicadas à tarefa de aprender. E que aprendiam elas? a desenhar... ou a retirar... melaço Subtraindo algo à constância da relação entre escrita e desenho no livro, ao cuidado até que Carroll punha no design das suas edições, não encontrei maneira de replicar em português o pun com draw (ainda que noutro episódio em que se fala de lições escolares, o da Tartaruga Fingida, tenha tentado que Despenho sugerisse Desenho e Destroço um Esboço). As irmãs da minha tradução estão a aprender a bordar e a coser, eventualmente cozem o melaço de que adoecem, e portanto a minha leitura carrega mais na saturação. Na boa e perversa matemática de Carroll, as constantes adições, subtrações, divisões e multiplicações (ou antes, no dizer da Tartaruga, Nullifications) que Alice experiencia levam-na a sair do ensimesmamento, ou da em-si-mesmice,  a que convida o ensino. 

Querendo "ir por partes" e determinar se ainda era ela quando acordara de manhã, Alice já não é quem podia ter deixado para trás, duplicando-se e telescopiando-se. A perda da identidade, materializando-se em literais e alegóricas dores de crescimento, ou no perigoso antídoto de levar coisas à boca para as controlar, tem feito as delícias e os delírios de leituras psicanalíticas da obra, não sendo propriamente divertida para Alice. Fá-la literalmente afogar-se em lágrimas e confronta-a não só com o "melaço" ligado à identificação, o molde convencional e redutor do que é ser "uma menina", como com a construção cultural de outras virtudes, na sua maioria não exclusivamente vitorianas mas resultantes do acúmulo a que damos o nome de moderna sociedade ocidental, "What did they live on" e "How is it you live?" são perguntas que atravessam o mundo das maravilhas até ao outro lado do espelho. Se, por um lado, elas refletem o tal mapa aos ziguezagues da criança em que a rotina se intersecta com a fantasia, desconfiando de personagens que nunca comem nem bebem nem vão à casa de banho, por outro servem para desestabilizar valores como sustento e trabalho.  Pois bem, as meninas viviam de melaço e o velho muito velho da canção que o Cavaleiro entoa para Alice, responde, "como água na peneira": "Apanho as borboletas / que dormem entre as violetas; / Delas faço tartes de perua / Para vender na rua."



Thursday, June 08, 2023

Tudo o que tem cabeça pode ser parado de a ter (I)


 Na enésima rábula de "vai querer mais chá", a lebre de Março pega numa faca afiada com feitio de lasca lunar, olhos diabólicos q. b., pousa-a na xícara e corta-a com precisão pela metade, exigindo, "só meia chávena por favor". Se é nonsense, faz sentido, só que eu ainda não me tinha lembrado que um fio de faca cindisse louça, ou que meia chávena pudesse conter líquido fervente sem amparo. 

Esse abismo do mundo possível que a representação torna presente é o que recordo com mais nitidez do meu primeiro encontro com a Alice no País das Maravilhas. Ainda que não faça parte da obra de Carroll, mas de Disney, a lição, creio, serve para os dois, e embora o seu deleite, à primeira vista, pareça provir de um recurso comum ao humor e à poesia, a literalização da metáfora, o que ali acontece é a evidência de um gesto (usar a faca para cortar a louça e não a merenda) e de um sentido (entender duplamente o que seja uma metade) que se podem reavivar no mundo por via de um código (visual ou verbal). Ao mesmo tempo que retalham a nossa perceção, e inclusive os nossos afetos (até então o chá para mim era a minha avó nos seus dias de vagar e boa têmpera, não um bule com um arganaz), este novo uso e sentido permitem outros ligamentos e preparações sem necessariamente desmentirem as noções que antes tínhamos sobre facas e meias chávenas. De resto, mesmo que a alternativa amedronte o nosso conforto, a sua maravilha está em que só podemos contemplá-la pela co-existência - isto era o que até agora pensava, mas se também for aquilo, há preparações possíveis. Creio que o curto-circuito provocado pelo nonsense, não é, A meia chávena talvez se possa beber pelas orelhas, se a primeira arrefecer e as segundas crescerem. 

Foi isto que redescobri com Rui Costa quando escolhemos o nome Alice para a protagonista da peça que viríamos a chamar Desligar e Voltar a Ligar.  Escreveu-me ele



Tal como a ficção científica, o nonsense não vive dos seus implementos, das extensões que chocam. O nonsense não é uma questão de aplicação, mas de desenvolvimento: de uma sintonização aguda das nossas disponibilidades sensoriais e dos dispositivos sensoriais dos códigos que temos, postos ao serviço da potência, fazendo do mundo um laboratório ou um gabinete de curiosidades generativas, estendendo as suas direções e, meio-esperançosamente, os seus fins, sem necessidade de bordos estanques ou de métodos eficazes de secagem na travessia do líquido ao sólido, do derretimento da face ao sabor da boca.



Muito se tem escrito sobre nonsense, se a sua ordem impõe uma destrinça do absurdo, se configura um sem-sentido (no-sense) ou um contra-senso. Para mim, configura mais um sentido negativo afim do que Keats entendia por capacidade negativa, fruto de um espírito dubitativo e contraditório, trazendo à consciência do mundo a possibilidade de se entreter mais do que uma hipótese, acreditar e não acreditar numa perceção ou sentença (a ironia romântica), suportar o medo de faltar o chão ou sermos engolidos sob ele, criar sobre isso com a secreta esperança de os mecanismos derivativos e regenerativos serem igualmente regeneradores. Portanto, o que me fascina no nonsense presente nos livros da Alice não consiste em ser tão-só um "dizer seja o que for" ("não é um facto que nas nossas interações com as pessoas ou a arte a natureza dos troços verbais nem sempre interesse" - diz-nos Tamen num livro em que tenta explicar a arte através de Alice), nem somente um contra-senso.* Michael Holquist, que escreveu muito sobre o nonsense em Alice, oferece vias de pensamento estimulantes mas chega a conclusões que ganham em ser polemizadas. Quanto a mim, Holquist engana-se quando aponta a Alice o erro de "a questão" ser "como se fazem as palavras significar tantas coisas diferentes", afirmando antes que pura e simplesmente significam uma só coisa divergente, quer do seu próprio sistema quer do sistema linguístico pré-existente.** O nonsense interessa-me porque me parece realmente dizer coisas divergentes sem as eliminar nem solucionar conquanto às vezes solvendo-as, mas também disponibilizando a recuperação da diferença, logo a possibilidade da mudança e de golpes de estados, esvaziamento de mundos e investigação de outros, de um modo tão sombrio quanto excitado.

Assim, a distinção de Holquist entre absurdo (o que joga com a ordem e com a desordem) e nonsense (o que só joga com a ordem, construindo dois sistemas diferentes que por si só são lógicos mas não se podem sobrepor) é, para mim, improdutiva. Por um lado, parece-me mais operacional uma definição de nonsense que englobe latamente o absurdo posto em linguagem e, por outro, que conserve a noção de lógica separando-a da ordem. Muitas vezes o que o nonsense faz é mostrar-nos que podem haver duas ou mais lógicas subjacentes à interpretação e com diferentes consequências práticas, e que a escolha entre lógica e ordem é diferente. Prescindir temporariamente da ordem não implica um abandono da lógica nem da cabeça. Por outro lado, também o valor da lógica para o conhecimento e a sabedoria, e sobretudo para uma relação cooperante entre seres, é relativo.

O exercício da lógica é fundamental ao humor mas não à moral. No que toca à cooperação linguística e, eventualmente à solidariedade, parece-me mais certeira, aliás, a teoria de Jean-Jacques Lecercle de que o nonsense é a prova de que a linguagem é um universo imoral, acabando por servir a necessidade de reinstituir um contrato linguístico social.*** Para mim, e julgo que em certa medida para Lecercle, que aplica ao nonsense uma espécie de materialismo dialético, o contrato reinstituído não terá necessariamente de ser o mesmo: o  desligamento da linguagem do ónus da prova factual ou moral, valendo simplesmente por si, talvez permita revitalizá-la enquanto instrumento de ligações outras, recuperadas, esquecidas, ou até novas, com impacto num construcionismo do mundo menos receoso do abandono desta ordem, e da loucura. Remeto para o ensaio de António Lobo Antunes e Daniel Sampaio, "Alice ou a esquizofrenia esconjurada", onde se diz da obra pulverizar o conceito clássico de loucura, na acepção usualmente aceite, a qual serve fundamentalmente para tranquilizar as pessoas, demarcando uma distinção clara entre o «saudável» e o «doente», que se nos afigura tão defensiva como artificial" (31-32).**** Para os autores, Dogson vs. Carroll representaria esta dualidade. Porém, vejo a alta probabilidade do contrário: a distinção entre normalidade e loucura não como defesa mas como amedrontamento. Já o que aterra e maravilha em Wonder/Underland é que as personagens estão perfeitamente tranquilas na sua condição de doidas varridas.

A questão do ónus da prova não deixa de ser interessante para delimitar o nonsense: a sua validade é interna aos seus mecanismos, mas o mundo que cria existe, subsiste, ou não fora deles? E se é mentira no mundo mas verdade na linguagem, será nonsense só por si? Se faz algum sentido, ainda é nonsense? Tem de ser, porque há beleza nessa verificação do nonsense, a de que toda a linguagem é de alguma forma evidência, só não se sabe de quê. Veja-se o argumento do rei sobre o dilema de não se poder cortar a cabeça ao gato de Cheshire se ele não tem o (resto do) corpo: "that anything that had a head could be beheaded, and that you weren't to talk nonsense". Matemático, diácono, conservador e alegadamente amante da ordem ao nível do que hoje se diria OCD, Lewis Carroll aka Dodgson cria o perfeito nonsense-proof statement que o mundo não comprova. Que ter cabeça seja condição para se ser decapitado (ou descabecinado, como diria a minha explicadora de física quando me ralhava) pode ser uma falácia. Mas parece certo que ser-cabeçudo (be-headed) só pode acontecer a quem tenha cabeça. Ou nem tanto - se interpretarmos aquele had a head ao nível da homofonia, será que dois certos fazem um errado? Ou serão duas cabeças - bi-headed - ou uma cabeça sem corpo e outra decapitada, apenas half a head. Afinal quem está a dizer disparates? A insistência na cabeça faz parte de uma curto-circuito referencial do nonsense, ao longo do texto (por contraposição a uma cadeia referencial, nos tradicionais mecanismos de coesão), desde "não percas a cabeça" a "cortem-lhe a cabeça". O que se passa com o nonsense relativamente a outros membros e funções corporais, é igualmente fascinante. Mas no caso  - temos cabeça, o que torna praticamente  impossível a sua "se-paragem" -  o universo imoral da linguagem do nonsense torna-se mecanismo de sanidade contra o medo da loucura.

É-me difícil perceber o que é, para Holquist, o nonsense at its purest, pelo qual se força uma palavra a querer dizer só uma coisa, a que pretende o seu utilizador.  Por uma definição lata de nonsense como a que proponho, "everything that had a head could be beheaded", é nonsense se a virmos como uma frase gramaticalmente coesa mas não coerente com o mundo. Mas não é nonsense ao nível de um Jabberwocky, em que, não se percebendo nada à primeira vista, somos todavia motivados à interpretação quando nos é sugerido que o mecanismo é um construto de neologismos por composição (port-manteaux), e que de alguma forma, obedece ao princípio inverso do que enuncia a Duquesa noutro passo: se atendermos aos sons, o sentido atenderá a si próprio. Mas não é líquido que o nonsense seja um mapa em que, descobrindo-se a cifra se acha o tesouro. Como eu disse atrás, pode solver mas não resolve - é o que se passa com a platitude linguística de have a head e be head. 

Já Holquist está a referir-se às frases de Humpty Dumpty que agastam Alice, como "glory" significar um "nice knock-down argument" (um belo argumento imbatível), e usa, para provar o seu ponto de o nonsense tornar a chave do significado propriedade individual e não convencional, a célebre tirada "The question is, who is to be master - that's all" (A questão é quem tem o poder, é tudo). É uma tirada predileta dos analistas foucauldianos, insistentes no poder de enunciar e no poder de endereçar, e de como estes se sobrepõem às máximas conversacionais de cooperação e polidez. Mas também não é claro que por "master" Humpty Dumpty se esteja a referir a si próprio, ou sequer ao locutor. Pode ser que as palavras se levantem e tomem a dianteira por si próprias. Ou seja, que palavra pode chefiar num sistema linguístico em que pode haver um "desenho de muito"? A diluição/distribuição do poder de codificação entre matérias várias, orgânicas e inorgânicas - de Alice aos animais e plantas so tempo e às próprias palavras - é uma das dádivas de Carroll: a minha linguagem é uma entre várias, e o reconhecimento disso pode ser portal para fora dos limites do meu mundo e da minha linguagem. Que haja ação fora de nós, pela linguagem, é o que se sugere logo a seguir no enunciado de Humpty Dumpty: "especialmente os verbos, esses são os mais orgulhosos — com os adjetivos pode-se fazer o que nos der na real gana, mas não com os verbos." Na verdade, são os verbos que parecem tomar a dianteira em had a head e could be beheaded... isto, e a eventual precedência dos sons sobre sentidos, concorrem para a tal geração de diferenças de coisas significadas, a partir de curiosidades, que tenho estado a tentar rodear para consolidar o meu caso do interesse do nonsense. 

Outro interesse é o nonsense relativamente ao tempo e o espaço; não estando propriamente fora deles ("out of space, out of time", parafraseando Poe), parece ter o poder de reinventar-lhes as propriedades e fronteiras.

Se interpretarmos anything that had a head could be beheaded ao nível do tempo verbal, podemos achar uma brecha dependente do sentido ser o conjuntivo (tudo o que tivesse cabeça podia ser decapitado) ou o pretérito do indicativo. No último caso, não é líquido que "tudo o que teve cabeça poderia ser parado - ou ser separado - de a ter." Mas como passar da contemplação, da potência da linguagem, aos atos possíveis esquecidos / negligenciados neste mundo estranho? Será que a linguagem não seria tão a despeito do mundo se abolíssemos ou suspendêssemos o tempo? Ou se ao menos nos abstivéssemos de o contar? A incerteza da interpretação, seja da linguagem seja do mundo, tem a perder com a nossas decisões de gestão do tempo, afetando a sua contagem a nossa latitude de ação? 

— Se conhecesses o Tempo tão bem como eu, não falavas dele. — disse o Chapeleiro. — Falavas com ele.

— Não percebo o que queres dizer — replicou Alice.

— Está claro que não! — exclamou o Chapeleiro, abanando a cabeça com ar de desprezo. — Quer-me parecer que nunca falaste com o Tempo!

— Talvez não — confessou Alice, prudentemente. —Só sei que tenho de bater o tempo certo quando estudo música.

— Ora aí está! — disse o Chapeleiro. — Ele não suporta que lhe batam. Agora, se tivesses uma boa relação com ele, ele fazia o que tu quisesses com o relógio.

*Miguel Tamen, What Art is Like, in Constant Reference to the Alice Books. Harvard University Press, 2012, p. 46.

** Michael Holquist, What is a Boojum? Nonsense and Modernism. Yale French Studies, 1969, pp. 145-164

*** Jean-Jacques Lecercle, Philosophy of Nonsense: The Intuitions of Victorian Nonsense Literature. Routledge, 1994, pp. 112-114

**** António Lobo Anuntes e Daniel Sampaio. "" Alice no País das Maravilhas" ou a esquizofrenia esconjurada." Análise Psicológica 2 (1978): 21-32.

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