Wednesday, February 22, 2006

Carta aberta ao alfinete sobre a linguagem relacional de Emily

Os poemas de Emily Dickinson parecem começar onde outros acabam. Há uma desconsideração pelo contexto, pela narrativa prévia, pelo incidente que induz o sentimento ou a reflexão. Temos, todavia, pistas – sugestões – que ajudam a situar o sujeito poético, e que em muitos casos inscrevem relações. Em primeiro lugar, uma relação com o outro, sendo este geralmente uma figura de poder: Deus, endereçado e desafiado pelo pronome de segunda pessoa do singular, “Tu”; ou um conjunto indeterminado de pessoas (a família? a comunidade? os garantes das convenções?), “Eles”, por exemplo no poema “Trancaram-me na prosa”. Em qualquer dos casos, sobre “o outro” parece reverter o ónus de uma traição, a responsabilidade pela sensação de cerco que se experimenta tantas vezes nos seus poemas. Demissão? A poeta endereça perguntas cuja resposta não obtém ou é incapaz de escutar. Os travessões são talvez um sinal dessa procura e, ao mesmo tempo, da sua insuficiência.Seria legítimo transpor os travessões em reticências segundo a convenção portuguesa? Não podem esses travessões sugerir também uma vontade, apesar de quase à partida ou quase logo frustrada, de diálogo?
Outro aspecto interessante é que os enigmas que a poeta se coloca, e nos coloca, têm sempre um contraponto, são imaginados relativamente a outras situações. Exemplos dos poemas aqui transcritos, introduzindo tais analogias de situações: “tanto valia”, “mais caridoso seria”, “precisava ser”. São locuções que nos preparam para a possibilidade de uma alternativa, mas esta é normalmente tão ou mais absurda do que o dilema inicial. Como se a poeta estivesse encurralada, e ainda assim procurando espaços de respiração, espaços que se calhar ela própria, só ela, abria e fechava, expiração e apneia de uma condição profundamente solitária. Queria ser pássaro e não voava; saltitava, indecisa, entre interpelação e alternativa.
Tu, meu caro alfinete, não contemplaste, no teu pastiche, estas duas coisas: o repto ao outro, e o esgotamento do que podia ser diferente ou alternativo.
Por mim, termino aqui a invocação de Emily, com o embaraço de não ter sido muito clara nesta tentativa de compreender. Só quero ainda deixar na íntegra o poema que o infante nos deu truncado (mas sabemos ambos que o seu testemunho foi totalmente determinado pela nossa orientação parental, e quem nos ouve não há-de apoquentar-se se souber que o infante não sabe ler), que talvez exemplifique melhor alguma coisa que quis dizer, e se calhar mal disse, sobre Emily:



Mas Claro – Eu rezei –
E a Deus acaso importou?
Tanto como se lá no Céu
Um Pássaro – batesse o pé –
E gritasse “Dá Cá” –

A minha Razão – a Vida –
Não a tive – senão por Ti –
Mais Caridoso seria
Deixar-me na Tumba do Átomo –
Contente, e Nada, e álacre e Muda
Do que esta vistosa Miséria.

2 comments:

Ruy Ventura said...

Gostei do blog, ainda no início. Ainda por cima aprecia Dickinson, uma dos pilares da minha casa.
Hei-de voltar.

dama said...

Que bom :)

Blog Archive

Contributors