Thursday, April 27, 2006

Pequena provocação



Desconfio, Tolstói, que não nos estávamos a entender:
Deixei que me pintasses por ter lido algures
não ser raro o artista tornar-se o retratado
mas cedo admito surpreendi em mim os teus trejeitos
que eu era um modelo às tuas poses obedecia inclinava-me
consoante me olhavas abstraía-me quando diluídas
tuas pupilas na função de me não veres erecta não havia
qualquer desejo entre nós eu simplesmente morria
no fim sabias disso desde o início eu sem qualquer mansidão
devo dizer-te esperei que mudasses de ideias não consegui
jogar contigo seria aliás delicado não me teres matado assim
como no início mas ias lá defraudar tão fáceis auspícios
prevendo homem cruel de antemão entre todos que jamais
me escreveram o deselegante desfecho meu corpo
de mulher perdida ao assalto da locomotiva os braços ao acaso
não balançavam já quiseste partir-me e veres de que me fazia
tiraste-me um filho tiraste-me dois deste-me mais que um homem
e sequer em troco te ocupou montar-me passe o obsceno chiste
achaste que devia perder-me mas foi quando comecei a cansar-te
e todos os sobrenomes e o espírito e as relações que me atribuías
fruto de um complexo sistema linguístico polida a falsa
intimidade nada daquilo me dizia tal como os meus olhos
repara não foram nunca escuros e tão pouco coruscantes
que o magnetismo é coisa de animal eu queria
ser pessoa sem disfarçados cordéis sem truques eu queria
tréguas mandava às urtigas o teu romance eu queria
a verdade ao passo que tu com critério julgavas escolhias
o tom pastel que melhor me assentava e dizias são escuros
enquanto eu para variar tentava ver-me no teu papel e claramente
te fixava custou tanto que não pude desistir e afinal depois
de tanto esforço entendi absolutamente nada eras quem
me lias e eu quem não existia e esse enjoo
da fêmea em que se entra e a outro voo é interdita já então
eu definhava sob tua pena hirta pouco fui
capaz espreitando por teu ombro de corrigir-te a mão
bom seria sermos quites porém ainda não em paz.

Anna Karenina

5 comments:

Filipe Guerra said...

Respondo à letra, numa imitação (má) do estilo de rio a correr da dama, com outra pequena provocação:

anna sempre me repugnou seres usada
violada pela pena de aço do velho
olha como se fosses minha filha
Eu riscava-te das bibliotecas
se houvesse uma inquisição para
defesa das almas violadas
Como te pôde retratar e retratar-se
quando até pugnou pelo fim da servidão
da terra e do homem como te pôde
fruir e logo enjoar como à última
das suas três mil servas, a ti
uma senhora

dama said...

Point taken :)
Assim dá gosto trocar alfinetes e galhardetes.

Rui Manuel Amaral said...

Segundo parece, Raskólnikov também escreveu poemas, alguns dos quais dedicados justamente a Dostoiévski. Gostava de os ler. Não sabes onde os posso encontrar?

Filipe Guerra said...

Rui, encontrei este nos meus arquivos secretos:

sibéria natal tristeza e que frio meu deus
com todo o respeito andou mal fiódor mikháilovitch na sua busca
do cristo moderno ao
eleger-me e depois de eleito ao abandonar-me
Semicrucificou-me apenas
quando eu queria morrer
pelos homens. Deu-me a Sónia a quem lavei os pés mas não salvei e não provou que pelo sofrimento
se chega ao amor
Deu-me um pouco da sua epilepsia
e a alergia ao cheiro das tintas que me traiu na esquadra é verdade
para cumprir o que estava no Livro
mas não bastou não me sinto
seu filho nem salvador de nada
apenas o triste mortal
rodion dito o Raskal

Anonymous said...

olha o rui amaral... ;-) não te sei ajudar mas se puder tento descobrir. PS q tal de fraldas?...

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