Sunday, March 31, 2019

Os novos e os velhos


Elis Regina era a força da intérprete. A permeabilidade toda, a mais timbrada entrega, garganta formando-se para que a alucinação fosse comunicável, a solidão transitiva, o paradoxo carregado, transportando nisso o espanto de levantar a garupa e abrir as narinas.

Os autores/compositores são, no primeiro caso, Belchior, e, no segundo, Fernando Brant e Milton Nascimento (esta última, só por si, dava um tratado sobre deslumbramento, consumo, revolução, generation gap e os seus descontentes, se calhar até o atual Brasil, mas está bem em ficar-se assim).


Thursday, March 28, 2019

[na cabeça do sonho - "o diabo mais do que um irmão" (LNJ)]

o homem amado, volvido violenta maldade, perseguia-a no quintal. Havia que transpor o muro, que não era muito alto, mas tinha os braços amputados e não podia guindar-se. Do outro lado debruçava-se outro homem, bom, com ele poder-se-ia acreditar. Estendia-lhe a mão. A única hipótese que ela tinha era mordê-lo e que ele suportasse a dor de puxá-la pela boca.

Tuesday, March 26, 2019

antes que me esqueça

poesia, parece-me, é minar as imagens da linguagem com outras imagens que se tocam e ainda não se deram totalmente a ver

uma entrega à arritmia de sentidos, em curto-circuito com a ligação direta à lógica totalitária do sentido (ou será à lógica alheia do sentido?)

poesia, acho, é habituar os ouvidos a dançarem com as palavras que nos escapam

+ sinestésico: que dancem os olhos às palavras que aspiramos provar

(dissentem os ritmos, agarra-te ao grego, poiein — circundar definições do que se faz pode ser o princípio de deixar de fazer)

Wednesday, March 20, 2019

A Criada Lá de Cima



Podem vir dizer-me «os mapas
dos vossos negros lugares do vazio».
Podem vir traçar plantas da casa, abrir
cadernos de encargos, não havendo
que se veja marcas de ogre ou tão-
-pouco uma almofada para um anão, é
incógnita se existiu princesa da plebe
ou aí dormiu ou se houve só
uma governanta a rodar
na noite as dobradiças da cama
                        posto que
se ache insana a repetição
duma santa maria em cada quarto —
breve afago, mãe inventada, pele
contra pele bombando o coração
,

Wednesday, March 13, 2019

Faz pelo Clima

No escasso outrora em que este blogue conversava num triozinho de teatro, um(a) jovem deste vídeo foi infante. Esquecidas as credenciais de acesso, gera agora palavras de ordem. Antes assim.


Tuesday, March 12, 2019

estremunhada de tesão,

a ereção do griot levantava-
-se a todos nunca mais terminava
no mundo a resistência do pulmão

Deep See, António Poppe, ZDB

Friday, March 08, 2019

depois de googlar o doodle da google

2 mulheres estão por trás do conceito. Ilustradoras dos 7 costados representaram, com surpreendente consistência de arranjos de caracteres retro e brilhantinas, frases "inspiradoras" de 13 moças: bravas (Lispector, Kallo), novas, vivas, afro-indianas, desempoeiradas, esperançosas (Ngozi Adichie, Kim Kom). Gostaria de não embarcar nem no estereótipo da maledicência entre fêmeas nem na demência da conspiração branqueadora. Mas no dia em que, entre outras reivindicações, se apela à greve ao trabalho doméstico e ao consumo, será só dos meus olhos a continuidade estética e cromática entre aquilo e isto? A mulher como branding, a luta como maquineta de flippers? Vemo-nos na Manif, Yoko Ono, Google babe, não percebo, diz-me que a culpa não é tua.

és uma desilusão, google

a mulher afinal é global, feita um grande Times Square, poliglota jogo de arcada. Barbie-escavadora, vem depressa, pelas alminhas, recolher este lixo.




Wednesday, March 06, 2019

Ricos títulos


































um atlas do mundo difícil

o sonho de uma língua comum

mergulhando ao naufrágio
a vontade de mudar

os campos negros da república

os factos da porta encastrada
um salvamento às cegas

a tua terra, a tua vida

nesta noite poesia
nenhuma há de servir

uma paciência selvagem

longe me faz seguir





Monday, March 04, 2019

a biblioteca do anão da história


Não se calam. Mesmo já fichados
os sinais e os restos nas estantes
da memória. Quem chegou alto? Quem

montou? Quem forrou o aparador? Quem
colou notícias nos bibelôs? Quem
juntou às folhas do gozoso coração

agrafos de ascensões, fina flor da exegese
epístolas à ordem de Cister, subtil casquinar
solene, perverso, temente, devoto e tudo:

uma partida com o mal salda-se afinal
na troça do entrudo. E ao mesmo tempo
o menor aspeto de bazar. Tanta vida

de refeitos corpos, passados: mister
criativo pode ser a arrumação, sóbrio
separador entre a história e a imagem

do arquivo. Podes podar a angústia e
esgalhar rentes sentidos, uma pista:
podes procurar onde foi omitido.




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