Sunday, May 26, 2019

Casa de Manuel Lopes

pórtico

Com seu quê de kitsch e delicado
de ossos, o Lopinhos queria ser padre.
Pregava de pequenino com avental
comovendo-se com ladainhas, rosários
e depois foi tempo da poesia, que lia
como mezinha, tónico azedo de interiores.

Logo por ironia na lancha Fé em Deus
havia de lixar a anca, incrível desgraceira:
«ó meu amor antes fosses ceguinha.»

corredor

«Era ao sair da infância, eu não sabia»
seguir o risco ao meio entre uma porta
e outra a vida, repetir os passos à luz
apagada, aprender a domar a constância
de sofrer e a falta de opção de crescer;

se é desconjunta a formosura apascentada
na cabeça, recusa clemência a curta
estatura, sobe a voz a encorpar a altura.
Vem por acréscimo a conquista da casa
quando se domina o vernáculo do lugar

ar do tempo: manual para se estar 
a cagar, luta de classes, pornografia q. b.
e outras prospeções e sortilégios
que «só a mim afetam e confrangem».
Corpo indiscorrível, labirinto de alçapões.

                                                                          fachada

O que nos encolhem as birras dos maiores:
tinha vinte e cinco anos no sessenta e oito —
o mesmo número da porta onde «no patamar
as esporas do pai» e a janela cosida
por um cristo redondo. Diria:
«Estou sentado virado para a parede desta casa»
diria: «baixo, mais baixo ainda, aguardar

mais aguardar nada», a prece
uma caução para vedar o pânico —
um tapume a rechaçar a avenida
e tantos indomináveis obstáculos
para o norte, o mar, pernambuco, as formas
opulentas do amor extremo, o inexplicável
volte-face do atropelo, a carroça

da tragédia, o destino órfão enfermo.
Entalar pois a porta ao mundo, povoar
a casa de prolongamento e fundo
como «centopeia amputada»
contra o corpo couraça de chagas
infinitas: a casa ermida peregrina
encenada à altura de uma vida.

[as citações são retiradas de sublinhados de livros alheios e escritos autógrafos nesta casa:]




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