Não posso ir contigo, amor
Nem tu virás comigo
Sou o longe que foste interpor
Nas muitas alturas do nosso futuro.
Sabes quem eu sou
Viste o sol de frente
Pois eu sou aquele que muda
Insistente do nada para o um.
Às vezes te quero nua
Às vezes te quero crua
Quero que tragas meus filhos no ventre
Quero que uma criança violentes.
Se por acaso me fores no encalço
Rendo-me no ato
E deixo contigo um tipo aleijado
Que te mostro como arranjar.
Não posso ir contigo, amor
Nem tu virás comigo
Sou o longe que foste interpor
Nas muitas alturas do nosso futuro.
Sabes quem eu sou.
Leonard Cohen foi a minha alma gémea e objeto
amoroso imaginários desde o 9º ano. O meu primeiro poema rejeitado foi
uma carta inexpedida que não deitei fora e ando farta de procurar sem êxito. O
refrão era “tu e eu, Leonard”. Nessa altura a canção que retraduzo tinha vinte anos*, eu havia de viver mais de quarenta na contemporaneidade de
Cohen sem nunca lhe ter dirigido a palavra. Depois, nos meus vinte e quatro, caiu-me no colo
a encomenda do romance Beautiful Losers. Estávamos na pré-internet e eu na
biblioteca extasiada deixei que me emparedassem os tomos das enciclopédias Britannica
e Luso-Brasileira para viver entre os iroqueses com Leonard Cohen,
que pela sua parte me ignoraria em preces e engates e angústias lá longe no
Canadá ou na ilha grega a carpir por uma norueguesa. De onde nunca fomos vistos
em Elsinore. Um par de anos mais tarde, aliás, só restariam de nós ruínas, já
que, no auge tresloucado da hubris, aceitei traduzir-lhe as canções, o que me
valeu a dizimação pelo mais cáustico crítico da era. Ainda por cima tinha
razão. Néscia e sobranceira, pus-me a jeito à catástrofe. O crítico cilindrou-me os
disparates, entre os quais – tremo – o ter traduzido Book of Changes por
Livro de Câmbios, quando afinal era o venerando I-Ching, e aquilo
foi ao ponto de quase me ver protagonizando a história, tantas vezes repetida
pelo editor da obra, sobre o tradutor que se enforcara com os cabos da
impressora, como se fosse anedota para rir. O tanas, miserável tragédia.
Recompus-me a custo. Lá em casa, o cônjuge, com pergaminhos melómanos, consolou-me com dichotes escarninhos aos gorjeios de Leonard, que no seu veredicto eram uma
pieguice pegada sobre o som de fundo do padre Zezinho.
Mas
o pior dos dislates foi ter lançado a unha bilingue ao género ingrato das lyrics.
É que a falta de encaixe na frase musical, mesmo (ou tanto mais) se melosa ou soporífera, resulta numa cacofonia investida contra as nossas mais valentes e
violentas memórias, aquelas a cujo ritmo batemos os lugares comuns do coito, da
dor de corno, dos estremecimentos do crânio e da terra, da crise de fé ou de
prata. Se não cabe na cançoneta, se não entra na pauta da nossa cabeça, a letra
portuguesa é só um esqueleto patego servido a frio, como as tripas do Porto que
o poeta enjeitou como placebo do amor. Há ainda problema maior: aquilo, sem a espessura sonora da língua ligada originalmente à música, só a ferros se aguenta, fica ali mutilado e sofrível quando sozinho na página ou tela, em branco. E tu, Leonard, largavas-me aos bichos,
mas não soubeste quem eu sou.
*Desde
o século passado, é a minha terceira tentativa. Desta vez tentei seguir o “princípio
do pentatlo” de Peter Low (2005): que seja cantável, que tenha sentido, que se ache
natural, que conserve o ritmo, que ligue à rima (Low, porém, adverte que a
maior palermice pode ser a sabujice ao esquema rimático original). Mas
desesperam-me o meu ouvido e os meus pruridos. Mandei esta versão à maior
tradutora jogralesca que conheço, a Regina, da terra das tripas geralmente
quentes, e de Guimarães por parte dos pais. Ela logo tratou de me desarmar o
eufemismo, amolando a faca no infanticídio:
Às vezes nua te quero
Outras feroz como és
Tão prenha de filhos meus
Que até chacinas bebés
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