Quando comecei a desafiar o alfinete com a Emily Dickinson, não fazia ideia de onde iríamos dar. Olhando para o que fizemos, fico contente. Para além de abordagens talvez controversas, como textos apócrifos e não convencionalmente literários (uma receita de dois dias abreviada para quatro horas), bem como o pendor para a falácia biográfica (Emily escrevia no verso de receitas de cozinha? Então porque é que não consegui desencantar uma imagem com um desses manuscritos?), trabalhámos três das melhores maneiras para chegar a uma obra. A tentativa de compreensão e comentário, a tradução e a glosa (ou paródia ou pastiche, como lhes quiserem chamar, dando-se alvíssaras a quem destrinçar finamente estes conceitos). Os dois últimos modos relacionam-se. Já Fernando Pessoa dizia que, para aprender mais de literatura, urgia fazer uma História de Traduções conjuntamente com uma História de Plágios. É também dele a ideia de que muitos textos (“e mesmo grandes textos”) beneficiariam em ser traduzidos para a língua em que foram escritos. Lançou este argumento, claro, como ramificação da sua crença de que a arte seria mais importante do que o artista, e portanto os bons poemas só ganhariam em ter remakes consoante a evolução do gosto crítico. É uma ideia pragmática. Mas não muito exequível, visto que é difícil saber onde acaba a tradução e começa a emenda. E Fernando Pessoa defendeu, noutro lado, que era de evitar a tentação de melhorar um texto.
De qualquer forma, e embora se possa pensar que é grande privilégio de um nativo sentir numa poesia as nuances do génio de uma língua, ao considerar isto senti de repente grande pena de me estar vedada essa forma de compreensão, do transfer linguístico, na poesia da literatura portuguesa. Ocorreu-me então a ideia de colmatar essa falha, olhando para traduções estrangeiras de poemas portugueses. Pesquisando na net nas línguas que melhor domino, o francês e o inglês, o máximo que encontrei foi isto. As traduções pareceram-me excelentes. Mas é muito pouco, começa só na lírica moderna, e depende da subjectividade dos dois tradutores carolas de serviço, Richard Zenith e Alexis Levitin. Bem hajam. São patrocinados pelo IPLB. Ainda bem. Contudo, é caso para nos interrogarmos sobre tudo o resto que não se anda a fazer para defender a nossa literatura. Arrisco mesmo dizer, para defender a nossa língua. É que Alexis Levitin, nessa página, inclui um interessante depoimento sobre o seu trabalho de tradução de Eugénio de Andrade, e dos anos que passou para modular o idioma dos saxões com alguma das sonoridades do português e, suponho agora eu, das suas particularidades sintácticas, da inflexão dos seus idiomas, e dos imaginários e formações ideológicas que obviamente suscita o pensar em qualquer língua. Conseguirmos contaminar com isso outras línguas parece-me uma forma criativa e inteligente de fazermos viver a nossa língua. Mestiçar é uma forma de sobreviver pela comunhão. Daí o sucesso actual do inglês. Mas essa lição, a nós, parece que só serviu para adoçar más consciências esclavagistas. Linguisticamente, mantemos o estúpido regozijo na facilidade com que aprendemos as línguas dos outros, e na dificuldade com que a nossa se transpõe (essa intraduzível “saudade”, de “soledade”, de orgulhosamente sós).
P. S.: pequena foto em gratidão à gentileza de estranhos para com a lusofonia, depois da agradável experiência de ter visto, este Verão em Nápoles, várias obras portuguesas nos escaparates das livrarias.
Monday, February 27, 2006
Friday, February 24, 2006
Female Bonding #1
MULHERES
As minhas três irmãs estão sentadas
sobre rochas de obsidiana preta.
Pela primeira vez, a esta luz, consigo ver quem são.
A minha primeira irmã está a coser o fato para a procissão.
Vai vestida de Senhora Transparente
e todos os seus nervos estarão à vista.
A minha segunda irmã também está a coser
sobre a ferida do peito, que nunca cicatrizou completamente.
Espera, enfim, aliviar este aperto no coração.
A minha terceira irmã está a contemplar
uma crosta vermelho-escura que a ocidente se estende ao longe sobre o mar.
Tem as meias rotas mas é formosa.
Adrienne Rich,
Leaflets, 1969, tradução roubada aqui, onde também se pode ler o original.
ENDECHA DAS TRÊS IRMÃS
As três irmãs conversavam em binário lentíssimo.
A mais nova disse: tenho um abafamento aqui,
e pôs a mão no peito.
A do meio disse: sei fazer umas rosquinhas.
A mais velha disse: faço quarenta anos, já.
A mais nova tem a moda de ir chorar no quintal.
A do meio está grávida.
A mais cruel se enterneceu por plantas.
Nosso pai morreu, diz a primeira,
nossa mãe morreu, diz a segunda,
somos três orfãs, diz a trceira.
Vou recolher a roupa no quintal, fala a primeira.
Será que choeve? fala a segunda.
Já viram minhas sempre-vivas? falou a terceira,
a de coração duro e soluçou.
Quando a chuva caiu ninguém ouviu os três choros, dentro da casa fechada.
Adélia Prado, Bagagem, 1975
Wednesday, February 22, 2006
Carta aberta ao alfinete sobre a linguagem relacional de Emily
Os poemas de Emily Dickinson parecem começar onde outros acabam. Há uma desconsideração pelo contexto, pela narrativa prévia, pelo incidente que induz o sentimento ou a reflexão. Temos, todavia, pistas – sugestões – que ajudam a situar o sujeito poético, e que em muitos casos inscrevem relações. Em primeiro lugar, uma relação com o outro, sendo este geralmente uma figura de poder: Deus, endereçado e desafiado pelo pronome de segunda pessoa do singular, “Tu”; ou um conjunto indeterminado de pessoas (a família? a comunidade? os garantes das convenções?), “Eles”, por exemplo no poema “Trancaram-me na prosa”. Em qualquer dos casos, sobre “o outro” parece reverter o ónus de uma traição, a responsabilidade pela sensação de cerco que se experimenta tantas vezes nos seus poemas. Demissão? A poeta endereça perguntas cuja resposta não obtém ou é incapaz de escutar. Os travessões são talvez um sinal dessa procura e, ao mesmo tempo, da sua insuficiência.Seria legítimo transpor os travessões em reticências segundo a convenção portuguesa? Não podem esses travessões sugerir também uma vontade, apesar de quase à partida ou quase logo frustrada, de diálogo?
Outro aspecto interessante é que os enigmas que a poeta se coloca, e nos coloca, têm sempre um contraponto, são imaginados relativamente a outras situações. Exemplos dos poemas aqui transcritos, introduzindo tais analogias de situações: “tanto valia”, “mais caridoso seria”, “precisava ser”. São locuções que nos preparam para a possibilidade de uma alternativa, mas esta é normalmente tão ou mais absurda do que o dilema inicial. Como se a poeta estivesse encurralada, e ainda assim procurando espaços de respiração, espaços que se calhar ela própria, só ela, abria e fechava, expiração e apneia de uma condição profundamente solitária. Queria ser pássaro e não voava; saltitava, indecisa, entre interpelação e alternativa.
Tu, meu caro alfinete, não contemplaste, no teu pastiche, estas duas coisas: o repto ao outro, e o esgotamento do que podia ser diferente ou alternativo.
Por mim, termino aqui a invocação de Emily, com o embaraço de não ter sido muito clara nesta tentativa de compreender. Só quero ainda deixar na íntegra o poema que o infante nos deu truncado (mas sabemos ambos que o seu testemunho foi totalmente determinado pela nossa orientação parental, e quem nos ouve não há-de apoquentar-se se souber que o infante não sabe ler), que talvez exemplifique melhor alguma coisa que quis dizer, e se calhar mal disse, sobre Emily:
Mas Claro – Eu rezei –
E a Deus acaso importou?
Tanto como se lá no Céu
Um Pássaro – batesse o pé –
E gritasse “Dá Cá” –
A minha Razão – a Vida –
Não a tive – senão por Ti –
Mais Caridoso seria
Deixar-me na Tumba do Átomo –
Contente, e Nada, e álacre e Muda
Do que esta vistosa Miséria.
Outro aspecto interessante é que os enigmas que a poeta se coloca, e nos coloca, têm sempre um contraponto, são imaginados relativamente a outras situações. Exemplos dos poemas aqui transcritos, introduzindo tais analogias de situações: “tanto valia”, “mais caridoso seria”, “precisava ser”. São locuções que nos preparam para a possibilidade de uma alternativa, mas esta é normalmente tão ou mais absurda do que o dilema inicial. Como se a poeta estivesse encurralada, e ainda assim procurando espaços de respiração, espaços que se calhar ela própria, só ela, abria e fechava, expiração e apneia de uma condição profundamente solitária. Queria ser pássaro e não voava; saltitava, indecisa, entre interpelação e alternativa.
Tu, meu caro alfinete, não contemplaste, no teu pastiche, estas duas coisas: o repto ao outro, e o esgotamento do que podia ser diferente ou alternativo.
Por mim, termino aqui a invocação de Emily, com o embaraço de não ter sido muito clara nesta tentativa de compreender. Só quero ainda deixar na íntegra o poema que o infante nos deu truncado (mas sabemos ambos que o seu testemunho foi totalmente determinado pela nossa orientação parental, e quem nos ouve não há-de apoquentar-se se souber que o infante não sabe ler), que talvez exemplifique melhor alguma coisa que quis dizer, e se calhar mal disse, sobre Emily:
Mas Claro – Eu rezei –
E a Deus acaso importou?
Tanto como se lá no Céu
Um Pássaro – batesse o pé –
E gritasse “Dá Cá” –
A minha Razão – a Vida –
Não a tive – senão por Ti –
Mais Caridoso seria
Deixar-me na Tumba do Átomo –
Contente, e Nada, e álacre e Muda
Do que esta vistosa Miséria.
Monday, February 20, 2006
Ainda Emily e os Pássaros
Avisamos quem porveitura tenha a amabilidade de espreitar este blogue que estamos a ser boicotados por infindos problemas informáticos, vedando-nos o acesso à net. Aproveito esta aberta para deixar só mais esta versão de Emily Dikinson, que dedico ao infante. A imagem desta vez foi escolhida por mim, e vai para o alfinete.
A "Esperança" é a coisa com penas -
Que na alma se empoleira -
E canta uma cantiga sem palavras -
E nunca pára - a vida inteira -
E mais doce - na Tormenta - a ouvimos -
E precisava o vento ser sandeu -
Para afligir a Avezinha
Que a tantos aqueceu -
Ouvi-a na mais fria terra -
E no mais estranho mar -
Mas nem no Cabo mais Extreme
Me veio uma côdea esmolar -
A "Esperança" é a coisa com penas -
Que na alma se empoleira -
E canta uma cantiga sem palavras -
E nunca pára - a vida inteira -
E mais doce - na Tormenta - a ouvimos -
E precisava o vento ser sandeu -
Para afligir a Avezinha
Que a tantos aqueceu -
Ouvi-a na mais fria terra -
E no mais estranho mar -
Mas nem no Cabo mais Extreme
Me veio uma côdea esmolar -
Tuesday, February 14, 2006
Bloguismo conjugal e consumismo sazonal
Emily 376
Somos um trio que vive de fixações e, por isso, também tive de experimentar o gerador. A mim calhou-me o 376. Eu sei que continua, mas, porque sou inocente, só me saiu esta parte. Como fala de pássaros obstinados,
eu lembrei-me do Beep Beep.
Mas Claro - Eu rezei -
E a Deus acaso importou?
Tanto como se lá no Céu
Um Pássaro - batesse o pé -
E gritasse "Dá Cá" -
eu lembrei-me do Beep Beep.
Mas Claro - Eu rezei -
E a Deus acaso importou?
Tanto como se lá no Céu
Um Pássaro - batesse o pé -
E gritasse "Dá Cá" -
Sunday, February 12, 2006
Black Cake Recipe
Apesar do alfinete não me dar troco e assobiar ao lado com posts de tísicos e hospitais, eu insisto com mais uma composição de Emily Dickinson. Vai a versão mais breve, embora haja outra, para fazer de um dia para o outro, com tâmaras e peras. A genuína decerto seria poderosa, mas não para todos os estômagos.
Colocar no fundo do forno uma taça com água. Pré-aquecer a 110º C.
2 chávenas de açúcar
230 g manteiga
5 ovos
1/4 chávena de melaço
2 chávenas de farinha peneirada
1/2 colher de chá de fermento
1 colher de chá de cravinho
1/2 colher de chá de noz moscada moída
1 colher de chá de macis (é a parte que reveste a noz moscada, e não me parece de uso muito corrente pelas nossas bandas; se calhar pode reforçar-se a dose de cima…)
1 colher de chá de canela
1/2 chávena de brandy
400 g de uvas secas
300 g de passas de Corinto
300 g de casca de limão ou lima
Juntar o açúcar à manteiga a pouco e pouco, misturar até obter um creme claro. Adicionar os ovos e o melaço. Bater bem. Voltar a peneirar a farinha com o fermento e as especiarias. Se usar margarina ou manteiga sem sal, acrecentar 1/2 colher de chá de sal.
Bater os ingredientes peneirados na mistura, à medida que se adiciona, gradualmente, o brandy. Juntar e mexer bem as uvas secas, as passas e a casca de limão.
Verter a massa em duas formas de bolo inglês, forradas com papel de cera, ou papel vegetal untado.
Cozer a 110º C durante 3 horas (não é gralha). Retirar a taça com água na última meia hora. Deixe arrefecer antes de desenformar.
Voltar a embrulhar em papel vegetal, e deixar repousar várias horas num lugar fresco e escuro.
(na foto, o cesto em que Emily fazia descer pela janela ofertas alimentares para os entes queridos)
Colocar no fundo do forno uma taça com água. Pré-aquecer a 110º C.
2 chávenas de açúcar
230 g manteiga
5 ovos
1/4 chávena de melaço
2 chávenas de farinha peneirada
1/2 colher de chá de fermento
1 colher de chá de cravinho
1/2 colher de chá de noz moscada moída
1 colher de chá de macis (é a parte que reveste a noz moscada, e não me parece de uso muito corrente pelas nossas bandas; se calhar pode reforçar-se a dose de cima…)
1 colher de chá de canela
1/2 chávena de brandy
400 g de uvas secas
300 g de passas de Corinto
300 g de casca de limão ou lima
Juntar o açúcar à manteiga a pouco e pouco, misturar até obter um creme claro. Adicionar os ovos e o melaço. Bater bem. Voltar a peneirar a farinha com o fermento e as especiarias. Se usar margarina ou manteiga sem sal, acrecentar 1/2 colher de chá de sal.
Bater os ingredientes peneirados na mistura, à medida que se adiciona, gradualmente, o brandy. Juntar e mexer bem as uvas secas, as passas e a casca de limão.
Verter a massa em duas formas de bolo inglês, forradas com papel de cera, ou papel vegetal untado.
Cozer a 110º C durante 3 horas (não é gralha). Retirar a taça com água na última meia hora. Deixe arrefecer antes de desenformar.
Voltar a embrulhar em papel vegetal, e deixar repousar várias horas num lugar fresco e escuro.
(na foto, o cesto em que Emily fazia descer pela janela ofertas alimentares para os entes queridos)
Friday, February 10, 2006
Mais depressa se agarra um pássaro do que esta miúda a voar
Com cobardia iludo a pequena provocação do alfinete sobre os gorjeios de mulheres e os discursos dos homens, apresentando a minha versão deste poema de Emily Dickinson, poeta que, sem ponta de garrulice, não obstante balbuciava e tergiversava:
Trancaram-me na Prosa –
Como quando, uma Garota,
Me castigavam no Quarto –
Por me quererem “sossegada” –
Ora! Pudessem eles espreitar –
O meu Cérebro – andar à volta –
Tanto valia encurralarem
Um Pássaro – por Trespasse –
Ele só tem de querer
E com ligeireza de estrela
Abolir seu Cativeiro –
E rir – O mesmo a mim me basta –
Para evitar confusões
Informa-se, a quem vier a ler este blogue, que dama
e alfinete respondem(-se) em dias alternados, com templates cor-de-rosa e azul, respectivamente. Esperam, porém, melhorar o descuidado grafismo.
Mais se esclarece que a selecção de grande parte das imagens cabe à criança que têm em comum, Infante, que poderá também contribuir textualmente, mas sem cor definida nem predilecção clubística.
e alfinete respondem(-se) em dias alternados, com templates cor-de-rosa e azul, respectivamente. Esperam, porém, melhorar o descuidado grafismo.
Mais se esclarece que a selecção de grande parte das imagens cabe à criança que têm em comum, Infante, que poderá também contribuir textualmente, mas sem cor definida nem predilecção clubística.
Thursday, February 09, 2006
Prendas
Cabalmente instruídas mas
pouco experimentadas
somos as cabras-
-cegas da literatura.
Sustém-nos o tédio
e a lonjura sujeitamos
o verso a tarefas prendadas
e a frase lavramo-la com
a mesma fastidiosa ternura
dos trabalhos de costura:
raros acontecem os poemas
um ror de vezes a escrita
sob censura traça-se
um verso emenda-se
a mão o avesso não
falta à compostura.
o mundo repartido
em rimas assi-
métricas cesuras contra
tempos, rotundamente
Fracassamos.
Por que não escrevemos?
Porque as nossas vidas são falhas
de convulsões e a palavra é
Arte dócil como nós
e paciente aguarda
e pega no talher com
etiqueta e leva
só com todos já
servidos
a apurada
refeição à nossa boca.
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