Monday, August 12, 2019

Herbsttag II

 Ainda mal sei apontar nesta língua, mas a falta de conteúdo leva-me a reparar mais na estrutura – e depois, comparando os meus resultados com os anteriores, nas diferenças. É hesitantemente que reconduzo Rilke à rima, já que a nossa leitura foi tão feliz sem ela. De “Herbsttag” há, que eu saiba, cinco versões (aqui se podem ler três delas): duas em verso livre — Quintela, já referido, e Maria João Costa Pereira — e três em rima — A. Herclano de Carvalho (texto em baixo) e Vasco Graça Moura… e, agora, a minha. Tenho problemas com a tradução Maria João Costa Pereira (que foi, julgo, competente tradutora de Freud e sem dúvida demonstra traquejo da escrita), pois o cuidado na partição do verso é discutível e faz, designadamente, aquela revoada de folhas terminar em défice, com apenas meio final.  Gosto menos da tradução de Graça Moura: reconheço que o seu contributo para a história da tradução portuguesa é enorme, colocando em cima da mesa o debate do estatuto autoral a outorgar ao tradutor (embora em minha opinião, um tradutor seja um tradutor seja um tradutor), e produzindo com arquitetura exímia textos poéticos que antes não tínhamos sequer em verso. Das três versões rimadas, a de VGM é a única que segue rigorosamente o esquema do original (alternando entre cruzadas, emparelhadas e interpoladas), o que atesta o seu virtuosismo; porém, é esse mesmo que dificulta ouvirmos nas suas traduções de Rilke a rouquidão do traduzido — a massa da língua incorpora, e até me parece que VGM camoniza Rilke. Refiro-me ao que que li, que foram os Sonetos a Orfeu – a que vem apenso “Herbsttag” por ter sido, explica-se no prefácio, a primeira tentativa do poeta com Rilke. Isto é perigoso: as minhas reservas talvez sejam recalcamentos. Eu e VGM temos letras em comum, começámos por traduzir Rilke pelo mesmo poema, e ambos fazemos poesia em que gostamos de rimar, pelo que parece que tínhamos para nós implícito aquilo que A. Herculano de Carvalho assumiu como critério de tradução: “conservar a rima sempre que o original seja rimado” (2003: 11). Eu prefiro, ainda assim, pensar-me como Barrento pensava David Mourão-Ferreira:  “domínio de todas as modulações da rima, rima imperfeita ou meia-rima num uso criativo” (1997: 260). Mas isso notamos também na tradução de Carvalho, um homem sóbrio, engenheiro químico que pugnou pela interação ciência-cultura. Como Quintela, aliás, chegou a publicar um livro de poemas, mas não se teria como tal (pois deixou outros, com peças de teatro, inéditos, só postumamente reunidos), e portanto penso que se pode considerar a sua tradução a prova de que a opção pela rima não é apanágio dos poetas, e finalmente que – equiparando-se a sua tradução em qualidade, creio, à de Quintela – o impacto da questão da rima não se prende com o resultado da tradução:

Senhor, é tempo. O Verão foi muito longo.
Põe nos quadrantes já sombras escuras
E nas planuras larga o vento à solta.

Obriga os frutos a que se encham mais;
dá-lhes do sul inda dois dias quentes,
leva-os à perfeição e faze que entrem
no vinho denso as doçuras finais.

Quem não tem casa já não vai erguê-la.
Quem esteja só, fica mais só agora,
Lendo, escrevendo cartas, altas horas
ou, dum lado para o outro, na alameda,
Inquieto andando, enquanto as folhas correm.    (Rilke/Carvalho 2003: 243-44)

Os tradutores arranjam geralmente uma marca para se distinguirem dos outros, ou então para servir os seus planos de ação. Neste caso, há uma palavra, Fluren — dependentemente do género poderá querer dizer “corredores” (masc.) ou “campos” (fem.), e sendo plural no poema podiam ser ambos, embora o contexto aponte claramente para o segundo — que todos traduzimos diferentemente:  Quintela optou por “campinas” e Carvalho por “planuras”, mantendo-se fiel ao género original da palavra (embora as “planuras” sejam discutíveis, pois se tornam demasiado coesas com a questão do “sul”). Maria João escolheu “campos”, Graça Moura “prado” e eu “campos lavrados”. Defendo a minha escolha por o étimo da palavra indicar “terra arável” e por querer rimar (embora imperfeitamente) com “demorado”, no primeiro verso. Depois de assim me ter obrigado a percorrer as ocorrências tradutórias bem como as ocorrências de Rilke, reconheço que há duas escolhas minhas bastante idiossincráticas: uma delas é a palavra “cirandar”, mas não desgosto para “wander”, a outra é mais discutível e trai as redes significantes que parecem ser tão importantes na poesia de Rilke. É no segundo verso da primeira estrofe, onde encontramos o famoso bleiben, de que já falei como mostrando um estado continuado do ser (para Quintela) ou “permanecer”; literalmente, pois, o verso diz “Quem agora está só, vai assim longamente permanecer”. Eu, acarinhando as minhas rimas-por-trás-da-orelha, decidi que precisava do eco de “extensas” e “densas”, e aproveitei por introduzir uma palavra que reconheço mais da minha sensibilidade do que rilkeana: “vai continuar carente” — e era preciso deixar margem para se calhar esta solidão permitir a plenitude de amar sem objeto, que João Barrento (1996) entende como corolário de As Elegias de Duíno.


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