Ainda mal sei apontar nesta língua, mas a falta de
conteúdo leva-me a reparar mais na estrutura – e depois, comparando os meus
resultados com os anteriores, nas diferenças. É hesitantemente que reconduzo
Rilke à rima, já que a nossa leitura foi tão feliz sem ela. De “Herbsttag” há,
que eu saiba, cinco versões (aqui se podem ler três delas): duas em verso livre — Quintela, já referido, e
Maria João Costa Pereira — e três em rima — A. Herclano de Carvalho (texto em baixo) e Vasco Graça
Moura… e, agora, a minha. Tenho problemas com a tradução Maria João Costa
Pereira (que foi, julgo, competente tradutora de Freud e sem dúvida demonstra
traquejo da escrita), pois o cuidado na partição do verso é discutível e faz,
designadamente, aquela revoada de folhas terminar em défice, com apenas meio
final. Gosto menos da tradução de Graça
Moura: reconheço que o seu contributo para a história da tradução portuguesa é
enorme, colocando em cima da mesa o debate do estatuto autoral a outorgar ao
tradutor (embora em minha opinião, um tradutor seja um tradutor seja um
tradutor), e produzindo com arquitetura exímia textos poéticos que antes não
tínhamos sequer em verso. Das três versões rimadas, a de VGM é a única que
segue rigorosamente o esquema do original (alternando entre cruzadas,
emparelhadas e interpoladas), o que atesta o seu virtuosismo; porém, é esse
mesmo que dificulta ouvirmos nas suas traduções de Rilke a rouquidão do
traduzido — a massa da língua incorpora, e até me parece que VGM camoniza Rilke.
Refiro-me ao que que li, que foram os Sonetos a Orfeu – a que vem apenso
“Herbsttag” por ter sido, explica-se no prefácio, a primeira tentativa do poeta
com Rilke. Isto é perigoso: as minhas reservas talvez sejam recalcamentos. Eu e
VGM temos letras em comum, começámos por traduzir Rilke pelo mesmo poema, e
ambos fazemos poesia em que gostamos de rimar, pelo que parece que tínhamos
para nós implícito aquilo que A. Herculano de Carvalho assumiu como critério de
tradução: “conservar a rima sempre que o original seja rimado” (2003: 11). Eu
prefiro, ainda assim, pensar-me como Barrento pensava David Mourão-Ferreira: “domínio de todas as
modulações da rima, rima imperfeita ou meia-rima num uso criativo” (1997: 260).
Mas isso notamos também na tradução de Carvalho, um homem sóbrio, engenheiro
químico que pugnou pela interação ciência-cultura. Como Quintela, aliás, chegou
a publicar um livro de poemas, mas não se teria como tal (pois deixou outros,
com peças de teatro, inéditos, só postumamente reunidos), e portanto penso que
se pode considerar a sua tradução a prova de que a opção pela rima não é
apanágio dos poetas, e finalmente que – equiparando-se a sua tradução em
qualidade, creio, à de Quintela – o impacto da questão da rima não se prende com o resultado da tradução:
Senhor, é tempo. O Verão foi muito longo.
Põe nos quadrantes já sombras escuras
E nas planuras larga o vento à solta.
Obriga os frutos a que se encham mais;
dá-lhes do sul inda dois dias quentes,
leva-os à perfeição e faze que entrem
no vinho denso as doçuras finais.
Quem não tem casa já não vai erguê-la.
Quem esteja só, fica mais só agora,
Lendo, escrevendo cartas, altas horas
ou, dum lado para o outro, na alameda,
Inquieto andando, enquanto as folhas correm. (Rilke/Carvalho 2003: 243-44)
Os tradutores arranjam geralmente uma marca para
se distinguirem dos outros, ou então para servir os seus planos de ação. Neste
caso, há uma palavra, Fluren — dependentemente do género poderá querer
dizer “corredores” (masc.) ou “campos” (fem.), e sendo plural no poema podiam
ser ambos, embora o contexto aponte claramente para o segundo — que todos
traduzimos diferentemente: Quintela
optou por “campinas” e Carvalho por “planuras”, mantendo-se fiel ao género
original da palavra (embora as “planuras” sejam discutíveis, pois se tornam
demasiado coesas com a questão do “sul”). Maria João escolheu “campos”, Graça
Moura “prado” e eu “campos lavrados”. Defendo a minha escolha por o étimo da
palavra indicar “terra arável” e por querer rimar (embora imperfeitamente) com
“demorado”, no primeiro verso. Depois de assim me ter obrigado a percorrer as
ocorrências tradutórias bem como as ocorrências de Rilke, reconheço que há duas
escolhas minhas bastante idiossincráticas: uma delas é a palavra “cirandar”,
mas não desgosto para “wander”, a outra é mais discutível e trai as redes
significantes que parecem ser tão importantes na poesia de Rilke. É no segundo
verso da primeira estrofe, onde encontramos o famoso bleiben, de que já
falei como mostrando um estado continuado do ser (para Quintela) ou
“permanecer”; literalmente, pois, o verso diz “Quem agora está só, vai assim
longamente permanecer”. Eu, acarinhando as minhas rimas-por-trás-da-orelha,
decidi que precisava do eco de “extensas” e “densas”, e aproveitei por
introduzir uma palavra que reconheço mais da minha sensibilidade do que
rilkeana: “vai continuar carente” — e era preciso deixar margem para se calhar
esta solidão permitir a plenitude de amar sem objeto, que João Barrento (1996)
entende como corolário de As Elegias de
Duíno.
No comments:
Post a Comment