Thursday, August 15, 2019

último folhetim duma sequela alemã: de Sonetos a Orfeu, 1ª parte, 22 (II)



Eu estava a tentar evitar interpretar o soneto 22 dado o dano do contágio sobejamente explanado. Porém, o pensamento sobre (re)ocorrências e a verificação de que “Herbsttag”, de 21 de setembro de 1902, termina com treiben (um tremer das folhas, associável aí, parece-me, ao “tempo”, sobre que se interpela o “Senhor”) e, volvidos vinte anos, o soneto 22 principia com o tal Treibenden, faz-me especular. Se há algo em que concordam os críticos de Rilke que li é que não há fio, por mais esgarçado, que se possa tecer em torno dos vários livros, que ele estava constantemente a guinar de rumo, de instrumentos, de formas. Apontam-se-lhe fases. David Mourão-Ferreira (1976) traçou-lhe, em vez de fases, uma espécie de crises ­— três — mas começou-as em media res (passando assim por cima dos primeiros livros bem como de acontecimentos, na viragem do século que reconhece, todavia, como marcantes), exonerou-se de as apresentar de forma cronológica, antes como “instantâneos”.  O primeiro é 1902-3, Rilke tem 27 anos e conhece Auguste Rodin – para aprender o que ele via, escreve um primeiro ensaio sobre este, Cartas a Um Jovem Poeta, e concomitantemente completa O Livro das Horas e O Livro das Imagens (onde está “Herbsttag”), mais tarde Novos Poemas e Os Cadernos de Malte Laurids Brigge. O segundo é 1912: em Duíno, Rilke tem a revelação que lhe sugere os primeiros versos da primeira das Elegias que só dez anos mais tarde concluirá. No terceiro, 1922, passada a guerra e a mobilização para o exército austríaco, Rilke regressa a Duíno, lê e depois encontra Paul Valéry.

Se As Elegias de Duíno eram, segundo Mourão-Ferreira, o “desafio a todas as modalidades de poesia rigorosamente intelectual” (1976: 23), o encontro com Valéry irá deslumbrá-lo tanto como perturbá-lo: admira-o, mas Valéry é o poeta da composição contra a inspiração, do laboratório quasi-científico do verso. Em todo o caso, para Mourão-Ferreira, Rilke reage com a revolta (de Orfeu), e excede-se a “realizar, nos últimos cinco anos que lhe restarão de vida, alguns dos seus mais belos poemas em língua alemã e ainda as suas mais significativas experiências de poesia em língua francesa” (idem). De Sonetos a Orfeu, diz serem testemunho de “um súbito florescimento” (16), contanto os arrole no mesmo ímpeto de inspiração e anti-intelectualismo das Elegias (e foram escritos de um jato, em sobreposição às últimas destas). Miranda Justo apoia-se em vários críticos para nos apresentar uma narrativa semelhante. Mais: afirmando que a separação entre as elegias e os sonetos consiste na “metamorfose” do lamento ao cântico (e é interessante o que diz sobre os sonetos como permissão para ouvir e se deslocar enfim da visibilidade à “invisibilidade vibrátil” – 2005: 189), este mais recente tradutor dos sonetos apresenta-os inequivocamente como “no plano da discursividade, a introdução de uma tonalidade de ‘celebração’, de ‘invocação’ e ‘evocação’, de ritual de ‘consagração’” (2005: 187).

Tenho uma visão mais pessimista e moderna (menos romântica) dos Sonetos a Orfeu. Reconheço que a “consagração” consegue aí momentos jubilosos — de resto, também lá está no soneto 22, num outro verbo (re)ocurrente de Rilke, weihen (precisamente sagrar, inaugurar, iniciar [no mistério]) e que eu traduzi de modo fraco, “primeiro nos anima” (para erst weith un sein). E porém, julgo ver nele, como noutros do conjunto em duas partes, um outro tremor, treiben, que já não é o da vida discorrer pertencendo no limite a uma outra entidade que nos elude (Deus?), mas o de ser substituída pela máquina (que Rilke viu ser destruidora na guerra e velozmente ascendente na reconstrução posterior), Treibenden, interferindo no tempo da permanência (e vai grande distância deste, quando o envelhecer se torna real, ao que foi imaginado com ansiedade em “Herbsttag”). A permanência, alegar-se-á, acaba por ser reafirmada no soneto 22, mas não deixa de subsistir nele o receio do novo, que é mecânico e pode ser nocivo, consubstanciado não apenas, creio, em Treibenden, como em Flugversuch (literalmente, “testes de voo”). Corroborante com esta leitura, vejo o soneto 18: “Ouves o novo, Senhor, / ribombar e estremecer” – na tradução de M. Justo, 2005: 47) — das Neue, Herr, eu ouço, e parece-me tomar (não por continuidade, mas precisamente por repetição e ruptura) o anterior Herr, es ist Zeit (de “Herbsttag”). No soneto 18 (1ª parte), aliás, comparece a máquina, com bastante ominosidade: “como gira e se vinga / e nos desfigura e enfraquece” (idem), regressa no soneto 10 da segunda, num célebre verso “Todo o obtido ameaça-o a máquina” (2005: 85), e ao longo de todo o livro, esparsos mas com uma dicção diferente do que conheço do Rilke anterior, elementos da modernidade mecânica assomam (“luminosos perfis”, “rijo aço”, “aparelhos”, “caldeiras de fogo” e “martelos”) e fazem-no apenas nostalgicamente romântico mas já dialogante com o modernismo, quiçá o futurismo de outros pares. Pelo menos, assim entendo o desdém: “porém a parte da máquina / quer agora ser louvada” (1: 18, Rilke/Justo 2005: 47). Nesta linha, o título Sonetos a Orfeu terá um ressaibo: o poeta pressente que o novo pode estraçalhar, mas delibera/prefere/não resiste olhar para trás. O ensaio de novas formas – como o encurtamento do metro do soneto 22, promotor da velocidade de leitura — também concorre para este diálogo.

Treibenden re-ocorre, com uma colocação vocabular muito semelhante, no soneto 27 da segunda parte: die wir sind, als die Treibenden (e também em contraste rimático com bleiben), mas as duas traduções portuguesas que conheço onde se encontram ambos os sonetos optam por uma diferente escolha. Graça Moura usa primeiro “quem se apresse” (I, 22 – 1994: 30) e depois “se nos precipita” (II, 27 – 1994:63); Justo opta por “os que impelem” (I, 22; 2005: 55) e “os que movem” (II, 27; 2005:119); . Há outras duas traduções do soneto 22:  Quintela escolheu “pressurosos” (1998: 191) e David Mourão-Ferreira “apressados” (2003: 52). Mantenho que Treibenden ganhe em ser traduzido da mesma maneira nas duas instâncias, de uma forma que seja pelo menos ambivalente (permita a carga disfórica) e de preferência com sugestão maquinal. A minha “propulsão” ainda não me satisfaz, até porque pelos vistos carece desta longa nota, e não vale a pena explicar a anedota. Em todo o caso, “propulsão” evita contaminar o leitor com uma intuição que pode ser só minha – e na minha idade –

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