Eu estava a tentar evitar interpretar o soneto 22 dado o
dano do contágio sobejamente explanado. Porém, o pensamento sobre (re)ocorrências
e a verificação de que “Herbsttag”, de 21 de setembro de 1902, termina com treiben
(um tremer das folhas, associável aí, parece-me, ao “tempo”, sobre que se
interpela o “Senhor”) e, volvidos vinte anos, o soneto 22 principia com o tal Treibenden,
faz-me especular. Se há algo em que concordam os críticos de Rilke que li é que
não há fio, por mais esgarçado, que se possa tecer em torno dos vários livros,
que ele estava constantemente a guinar de rumo, de instrumentos, de formas.
Apontam-se-lhe fases. David Mourão-Ferreira (1976) traçou-lhe, em vez de fases,
uma espécie de crises — três — mas começou-as em media res (passando
assim por cima dos primeiros livros bem como de acontecimentos, na viragem do
século que reconhece, todavia, como marcantes), exonerou-se de as apresentar de
forma cronológica, antes como “instantâneos”.
O primeiro é 1902-3, Rilke tem 27 anos e conhece Auguste Rodin – para
aprender o que ele via, escreve um primeiro ensaio sobre este, Cartas a Um
Jovem Poeta, e concomitantemente completa O Livro das Horas e O
Livro das Imagens (onde está “Herbsttag”), mais tarde Novos Poemas e
Os Cadernos de Malte Laurids Brigge. O segundo é 1912: em Duíno, Rilke
tem a revelação que lhe sugere os primeiros versos da primeira das Elegias que
só dez anos mais tarde concluirá. No terceiro, 1922, passada a guerra e a
mobilização para o exército austríaco, Rilke regressa a Duíno, lê e depois
encontra Paul Valéry.
Se As Elegias de Duíno eram, segundo
Mourão-Ferreira, o “desafio a todas as modalidades de poesia
rigorosamente intelectual” (1976: 23), o encontro com Valéry irá deslumbrá-lo
tanto como perturbá-lo: admira-o, mas Valéry é o poeta da composição contra a
inspiração, do laboratório quasi-científico do verso. Em todo o caso, para
Mourão-Ferreira, Rilke reage com a revolta (de Orfeu), e excede-se a “realizar,
nos últimos cinco anos que lhe restarão de vida, alguns dos seus mais belos
poemas em língua alemã e ainda as suas mais significativas experiências de
poesia em língua francesa” (idem). De Sonetos a Orfeu, diz serem
testemunho de “um súbito florescimento” (16), contanto os arrole no mesmo
ímpeto de inspiração e anti-intelectualismo das Elegias (e foram
escritos de um jato, em sobreposição às últimas destas). Miranda Justo apoia-se
em vários críticos para nos apresentar uma narrativa semelhante. Mais:
afirmando que a separação entre as elegias e os sonetos consiste na
“metamorfose” do lamento ao cântico (e é interessante o que diz sobre os
sonetos como permissão para ouvir e se deslocar enfim da visibilidade à
“invisibilidade vibrátil” – 2005: 189), este mais recente tradutor dos sonetos
apresenta-os inequivocamente como “no plano da discursividade, a introdução de
uma tonalidade de ‘celebração’, de ‘invocação’ e ‘evocação’, de ritual de
‘consagração’” (2005: 187).
Tenho uma visão mais pessimista e moderna (menos
romântica) dos Sonetos a Orfeu. Reconheço que a “consagração” consegue
aí momentos jubilosos — de resto, também lá está no soneto 22, num outro verbo
(re)ocurrente de Rilke, weihen (precisamente sagrar, inaugurar, iniciar
[no mistério]) e que eu traduzi de modo fraco, “primeiro nos anima” (para erst
weith un sein). E porém, julgo ver nele, como noutros do conjunto em duas
partes, um outro tremor, treiben, que já não é o da vida discorrer
pertencendo no limite a uma outra entidade que nos elude (Deus?), mas o de ser
substituída pela máquina (que Rilke viu ser destruidora na guerra e velozmente
ascendente na reconstrução posterior), Treibenden, interferindo no tempo
da permanência (e vai grande distância deste, quando o envelhecer se torna
real, ao que foi imaginado com ansiedade em “Herbsttag”). A permanência,
alegar-se-á, acaba por ser reafirmada no soneto 22, mas não deixa de subsistir
nele o receio do novo, que é mecânico e pode ser nocivo, consubstanciado
não apenas, creio, em Treibenden, como em Flugversuch (literalmente,
“testes de voo”). Corroborante com esta leitura, vejo o soneto 18: “Ouves o
novo, Senhor, / ribombar e estremecer” – na tradução de M. Justo, 2005: 47) — das Neue, Herr, eu ouço, e parece-me tomar (não por continuidade, mas precisamente por
repetição e ruptura) o anterior Herr,
es ist Zeit (de “Herbsttag”). No
soneto 18 (1ª parte), aliás, comparece a máquina, com bastante ominosidade:
“como gira e se vinga / e nos desfigura e enfraquece” (idem), regressa no
soneto 10 da segunda, num célebre verso “Todo o obtido ameaça-o a máquina”
(2005: 85), e ao longo de todo o livro, esparsos mas com uma dicção diferente
do que conheço do Rilke anterior, elementos da modernidade mecânica assomam (“luminosos
perfis”, “rijo aço”, “aparelhos”, “caldeiras de fogo” e “martelos”) e fazem-no
apenas nostalgicamente romântico mas já dialogante com o modernismo, quiçá o
futurismo de outros pares. Pelo menos, assim entendo o desdém: “porém a parte
da máquina / quer agora ser louvada” (1: 18, Rilke/Justo 2005: 47). Nesta
linha, o título Sonetos a Orfeu terá um ressaibo: o poeta pressente que o
novo pode estraçalhar, mas delibera/prefere/não resiste olhar para trás. O
ensaio de novas formas – como o encurtamento do metro do soneto 22, promotor da
velocidade de leitura — também concorre para este diálogo.
Treibenden re-ocorre,
com uma colocação vocabular muito semelhante, no soneto 27 da segunda parte: die wir sind, als die Treibenden (e
também em contraste rimático com bleiben),
mas as duas traduções portuguesas que conheço onde se encontram ambos os
sonetos optam por uma diferente escolha. Graça Moura usa primeiro “quem se
apresse” (I, 22 – 1994: 30) e depois “se nos precipita” (II, 27 – 1994:63);
Justo opta por “os que impelem” (I, 22; 2005: 55) e “os que movem” (II, 27;
2005:119); . Há outras duas traduções do soneto 22: Quintela escolheu “pressurosos” (1998: 191) e David
Mourão-Ferreira “apressados” (2003: 52). Mantenho que Treibenden ganhe em ser traduzido da
mesma maneira nas duas instâncias, de uma forma que seja pelo menos ambivalente
(permita a carga disfórica) e de preferência com sugestão maquinal. A minha
“propulsão” ainda não me satisfaz, até porque pelos vistos carece desta longa
nota, e não vale a pena explicar a anedota. Em todo o caso, “propulsão” evita
contaminar o leitor com uma intuição que pode ser só minha – e na minha idade –
No comments:
Post a Comment