O que há de execrável nas traduções ditas bem feitas ('bem-feitas' para mim
no mau sentido) é a abolição de todo o resíduo de caos que está sempre presente num bom poeta. Há sempre
uma rouquidão no poema que é a voz do caos, da origem do combate que houve com
a treva, com a imperfeição, com a desordem em que o poeta se afogou e de que
emerge através do poema. (Andresen e Passos 1982: 4).
Se há rouquidão numa língua, é no alemão. Todo o
“Herbsttag” rima (entre cruzamentos e emparelhamentos), mas Quintela, para
fazer sobressair o estranho, o raro, aquilo que raspa, neste como em tantos
outros poemas do alemão que mais amava, terá prescindido da rima. Fê-lo também
com muitos outros poemas de formas fixas de Rilke, e foi aí que ele o superou
na responsabilidade de revolucionar a linguagem da nossa poesia. É esta a lição
da mais atenta estudiosa sobre o impacto das traduções de Rilke por Quintela na
poesia portuguesa, Maria António Hörster:
O exemplo de
Rilke/Quintela, que apresentava temas e motivos tão caros à sensibilidade e à
tradição lírica dos portugueses, porém trabalhados em verso anisométrico e não
rimado, e, para além disso, moldados numa linguagem de acentos modernos,
vigorosa, e despida de uma tradicional maviosidade, foi decisiva para a
renovação da lírica em Portugal. Limito-me, neste contexto, a enunciar um
testemunho oral que me foi confiado por E. Melo e Castro em 1995 (...).
Conforme declarou em conversa, toda a sua geração leu Rilke nas versões de
Paulo Quintela. Corriam também versões francesas e inglesas do poeta, mas era
com as versões de Quintela que se entusiasmavam. (...) Aquela linguagem áspera
e desprovida de musicalidade foi muito apreciada como moderna. (Hörster 2004: 721).
Hörster reforça também que Quintela furou “um dos mais
invocados critérios quando se fala de traduções poéticas, justamente o da
manutenção da rima” (2004: 719). Os
poetas portugueses desataram a escrever poemas ao curso do verso, carregando
mais no visual, ou na dança das ideias, e servindo com isso o surrealismo e o
experimentalismo conceptual.
Hörster aponta ainda os “efeitos de sonoridade” como outro
fator de “desrespeito” de Quintela e aí é-me difícil concordar. Aquele final do
“Dia de Outono” de Quintela agrada-me muito mais do que o de Vasco Graça-Moura,
que rima (se damos de barato que VGM sabia de prosódia, terá sido deliberada a
sua escolha de um vazio assonântico no penúltimo verso – “e a um ir e vir inquieto
se acostuma” – mas não percebo o fundamento). Assim, não é propriamente que
Quintela se concentrasse no conteúdo sobre a forma, ou no “espírito” sobre a
“letra”, mas que nos quisesse sobretudo forjar o material da língua para
acomodar aquela estranheza de dicção.
Suponho que afinal foi esta ideia de Hörster que me fez um dia querer aprender alemão e saber o
que dizia Rilke nele. Foi preciso, porém, esperar pela outra motivação, a da
idade.
3 comments:
E a Gulbenkian que tem a obra completa (ensaios e traduções), em 3 volumes, esgotada há muito...
E eu que os comprei tão baratinhos o ano passado na feira de excedentes da Biblioteca da FLUL. Bem hajas.
A sorte, por vezes, é justa. Trabalharei a minha: mais tarde ou mais cedo hei-de desencantar esses quintelas.
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