Monday, August 05, 2019

Paulo Quintela III

Manuel Alegre é dos poucos que reconhece a dívida a Paulo Quintela, faz um poema em seu nome, começa com esta aliteração, que se pode ler como um sussurro do outro: “Nada sabíamos da língua portuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensinou-nos” (uma boa intuição que não deixa de espelhar uma agenda — vivíamos no alheamento ditatorial, e não tínhamos como arredar a língua da rotina). Mas logo a seguir Alegre reconduz-nos ao doméstico do “mar salgado”, de que Quintela, julgo, queria fugir: “a ondulação o ritmo / o marulhar das frases e o seu / sabor a sal” (1995: 67). Que tinha Quintela, filho de um sapateiro e de uma padeira de Bragança, deslocado sempre para lugares pouco litorais, que ver com o “marulhar”? Se algo de mar trouxe (devolve?) à língua, foi o seu rouco – esse rouco que Sophia de Mello Breyner (uma mulher que afinal também compareceu no despique com os anjos) nos dizia ouvir nas traduções felizes:
O que há de execrável nas traduções ditas bem feitas ('bem-feitas' para mim no mau sentido) é a abolição de todo o resíduo de caos que está sempre presente num bom poeta. Há sempre uma rouquidão no poema que é a voz do caos, da origem do combate que houve com a treva, com a imperfeição, com a desordem em que o poeta se afogou e de que emerge através do poema. (Andresen e Passos 1982: 4).

Se há rouquidão numa língua, é no alemão. Todo o “Herbsttag” rima (entre cruzamentos e emparelhamentos), mas Quintela, para fazer sobressair o estranho, o raro, aquilo que raspa, neste como em tantos outros poemas do alemão que mais amava, terá prescindido da rima. Fê-lo também com muitos outros poemas de formas fixas de Rilke, e foi aí que ele o superou na responsabilidade de revolucionar a linguagem da nossa poesia. É esta a lição da mais atenta estudiosa sobre o impacto das traduções de Rilke por Quintela na poesia portuguesa, Maria António Hörster:

O exemplo de Rilke/Quintela, que apresentava temas e motivos tão caros à sensibilidade e à tradição lírica dos portugueses, porém trabalhados em verso anisométrico e não rimado, e, para além disso, moldados numa linguagem de acentos modernos, vigorosa, e despida de uma tradicional maviosidade, foi decisiva para a renovação da lírica em Portugal. Limito-me, neste contexto, a enunciar um testemunho oral que me foi confiado por E. Melo e Castro em 1995 (...). Conforme declarou em conversa, toda a sua geração leu Rilke nas versões de Paulo Quintela. Corriam também versões francesas e inglesas do poeta, mas era com as versões de Quintela que se entusiasmavam. (...) Aquela linguagem áspera e desprovida de musicalidade foi muito apreciada como moderna. (Hörster 2004: 721).

Hörster reforça também que Quintela furou “um dos mais invocados critérios quando se fala de traduções poéticas, justamente o da manutenção da rima” (2004: 719).  Os poetas portugueses desataram a escrever poemas ao curso do verso, carregando mais no visual, ou na dança das ideias, e servindo com isso o surrealismo e o experimentalismo conceptual.

Hörster aponta ainda os “efeitos de sonoridade” como outro fator de “desrespeito” de Quintela e aí é-me difícil concordar. Aquele final do “Dia de Outono” de Quintela agrada-me muito mais do que o de Vasco Graça-Moura, que rima (se damos de barato que VGM sabia de prosódia, terá sido deliberada a sua escolha de um vazio assonântico no penúltimo verso – “e a um ir e vir inquieto se acostuma” – mas não percebo o fundamento). Assim, não é propriamente que Quintela se concentrasse no conteúdo sobre a forma, ou no “espírito” sobre a “letra”, mas que nos quisesse sobretudo forjar o material da língua para acomodar aquela estranheza de dicção.
Suponho que afinal foi esta ideia de Hörster que me fez um dia querer aprender alemão e saber o que dizia Rilke nele. Foi preciso, porém, esperar pela outra motivação, a da idade.

3 comments:

João Moita said...

E a Gulbenkian que tem a obra completa (ensaios e traduções), em 3 volumes, esgotada há muito...

dama said...

E eu que os comprei tão baratinhos o ano passado na feira de excedentes da Biblioteca da FLUL. Bem hajas.

João Moita said...

A sorte, por vezes, é justa. Trabalharei a minha: mais tarde ou mais cedo hei-de desencantar esses quintelas.

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