Wednesday, November 25, 2020

Feira da Ladra

 
A arte de perder não custa treinar
dizia a Bishop, dolorida e ébria.
 
Também eu posso enumerar:
três portáteis por furto
ou oportunidade de perda, um
que apanhou sopa de pessoa
ao lado num avião
e ainda durou anos a fazer
um som de queimado
até que expirou num urro de fumo.
Dois que caíram ao chão
e um cujo ecrã rachou 
a meio de leitura peripatética.
O computador que foi afogado
pela jarra que o gato derrubou
(não o que também perdi
pelo telhado).
Foram oito até à data, vidas
de ficheiros, assanhos, afagos
e fotografias risqué
de margaridas despidas
quase sem cópias.
 
Papéis sem conto, livros, capas 
trocadas de discos, um kindle
inteiro dentro da mochila
que ficou no passeio e o carro
arrancou. Máquinas (sabotagens
de um excelente feriado). Um fato 
de banho e toalha num restaurante 
depois do mar recentemente. Que mais?
 
Carteiras, notas, telefones, diários
de bordo, bilhetes
e cidades. Universidades.
O fim da tese. Anos.
Molhos de chaves, portas
e cartas que deixei de abrir.
Óculos, bronzeador, cabelos
pretos. Versos. Prendas, pior
 
coisas que me emprestam
ou perdidas por terceiros
nas minhas propriedades
(as que restam e desleixo
como griffe
da fartura, ares de
olímpica distraída).

Paixões que sofri, homens
razoáveis
os mortos que devia
poupar à lista
por não haver comparação
ou nesga de regresso.
O pudor e o perdão próprios
para ser justa
a face.
 
(Não deixa de ser questão
de músculo ou nervos, a palidez
convocada ao susto, ciclone
de ácido.)
 
Paradoxalmente, uma bicicleta verde
alface, nova, em folha 
cromada, ágil
de mudanças, roubada­—
tem-me levado
a procurar na Graça
entre o arco e o panteão
entre os trapos e cacos que vêm 
na canção 
 
recôndito, solar e sujo, sujo
o passado a preço de refugo.

2 comments:

Porventura escrevo said...

Gostei do encadeamento narrativo do poema.
Talento burilado, com muita experiência
:-)

dama said...

Obrigada, Porventura.

Blog Archive

Contributors