Sunday, November 22, 2015

Aprendiz


para L. F.

do verbo que temo conjugar, que não digo
é o que não sou ainda e a cujo estampido
eu tremo e se comprime e entala no exíguo
espaço onde espero a luz no coração fundido —

que na cabeça se mantém aquela língua
brava, em brasa, brecha insegura que imagina
quase tudo o contrário ao que me ensinas
e eu a meu modo — não sou mal agradecida ­—

incorporo, se bem que em distonia, querido
ser, se bem que se decante um rumor áspero
onde sem estrépito a beleza erra, onde sem

secura. Só que se caem cântaros roço
arestas, sei que correspondo mas nem sempre
retribuo, enquanto paciente desfazes
meu rigor e o aceitas
.

Wednesday, November 11, 2015

Recensão

Em Spring and All o poeta
William Carlos

filho de uma mãe
de Porto Rico

solicita a imaginação
para a poesia

diz que a prosa é
sobre emoções

daí a primavera
no título

e tudo depende
disso

da fonte da
partida

da lagarta de
fugida


Saturday, November 07, 2015

Barroco da Penha de França


É densa a escuridão que me separa

das minhas traseiras e o ar opaco

no terceiro andar. Porém é facto

que sempre enfrento a simetria rara



entre o espelho mágico do WC

do vizinho e o quarto a cuja janela

escrevo. Vejo-o a ele amiúde em pêlo

sendo dia, só que à noite me vê



eu: no fronteiro vidro coço minha

cabeleira e cogito versos esquerdos

sem entender que oposta e má menina



em plano de Velasquez me persegue.

Não nego seduzir o que me impede

se quanto me limita me ilumina
.

Monday, October 26, 2015

O Gigante

para P. B.
para A. C.
para H. F.

Desculpem insistir pois não convém

manter a perda aberta e eu falhei

francamente na confusão da dor

que não soube distinguir entre amor

e aflição e se calhar ainda hoje

bato onde não têm de ouvir eco

que os versos nos subjugam e enganam

com pretensões crianças de um além

que não se verifica nem faz bem.



Absternha-se a emoção em circunstâncias

extraordinárias e desembrulhe-se

quem puder no embate do absurdo.

Despenhou-se, acabou, o resto é turvo

tudo; cabe estancar o que gangrena

se reincide a pena; ser sensível

não é opção de quem trava o gigante

com o arsenal que tem. Ponto final.



Parágrafo. Adenda. Eu disse, volto

após rodeio grande ao que perturba:

doeu a orfandade, doeu não

ter cuidado com ele e ele

não nos ter lembrado. Mas há mais

que isso — lidou com coisas que supomos

mal e nós admirámos sempre aquilo

que ele era capaz de conceber.



Quero-vos; não me julguem por escrever,

receie embora que dar forma a isto,

se parece que sara, no fim mude

pouco ou ainda para pior
.

Espanta-Espíritos


como mandam demónios esta carga
d’água como deitámos a febre amiúde
e mútua em toda a parte e como quanto pude
te prendi para singrar contigo e como sangro

por todo o iludido amor no interior
das húmidas paredes deste corpo neste quarto
e como foi tudo verdade e tão velhaco
e o sexo fracassado cúmplice do rancor

e como tanto nisto vem de veleidades d’alma
com histórias ilustradas e devo rir de mim
como girámos tantas vezes nas cinturas

como fizemos gatos treparem por pilares
e picotámos a pele e virámos as brasas
d’olhos como Francesca e Paolo e Abel e Caim.


Cenas Tristes

                                                para M. T.


Quando jovem adulta às vezes embarcava

em viagens, não vem ao caso, já então era pelintra

o teatro para mim era cheio de torcidas na cadeira

e como o mar os atores estalavam além das pessoas

e falavam e moviam um caudal quase tanto como a massa da água

era como se inspirassem demais e quando ficavam bravos

não havia arnezes que os amarrassem ao convés dos palcos.



Aportámos certa noite no Chiado a ver o Godot:

um palhaço, um sujeito, um carril betumado no estaleiro de Deus,

tudo era duro e o ar pálido e crespo como o avesso de um fruto,

provável efeito de papelão e luzes, ressoava o tablado de oco,

do subpalco esvaíam-se os atores além das pessoas.





Mas no final o Mário Viegas tornou a si do carácter

e à boca de cena como Balzac acusou

a atitude da espetadora que à entrada displicente

com um assobio desfalcado e um mal amolado estalo dos dedos

exclamara que era roubo o preço do teatro

quando tanto da vida davam os atores às vezes sob tortura

quando a juventude irreal esbanjava fáceis fortunas.



Eu era a insolente e por mais que me afundasse

não achei no pânico a escotilha na plateia

e enjoei e engoli meio desfeita pelas têmporas

por todo o esterno empolgado, por instantes só quis

que o Mário Viegas não tivesse existido se não pudesse calar-se

relevar, abençoar, envolver no seu pullover

a minha cabeça rubra à raiz dos cabelos

desmerecida então do mar do teatro de velas e pinturas



na saída dos artistas fiquei aflita para lhe falar

mas nenhum esperava e nenhum torceu

e garrulei sobre o acesso à cultura em vez de o abraçar

e acabei por seguir dali no carro dos amigos que tudo

calaram, e o condutor com o nariz colado à cana

levou todos a casa para se me confessar a sós

apaixonado, o que era absurdo e sórdido.



Pouco depois deixei de embarcar

mas não me fiquei por ali nem passou o pior:

anos mais tarde com meu amor num bar que salvo o erro

tinha nome religioso houve um outro Mário mais novo

que também era do teatro. Eu já devia ter parado de beber

e não me agradava a conversa que creio ter sido

ou eu ter entendido acerca de gajas de toda a maneira

eu já não era tão jovem e sofria mais.



E sempre cobarde dirigindo o juízo ao que menos contava

a minha mão voou aberta à bochecha do novo Mário

e ele inchou, senão de dor, de rancor, todo

transfiguração e ultraje, nisso vendo a deixa

para colocar a mais alta voz da representação

no vitupério das minhas maneiras, das minhas peneiras

tristes cenas e duques e bobos todos da madrugada

a saber que eu não valia um chavo, que insultara um falecido génio

naquela mesquinha noite onde aquele próprio

ferido Mário estivera e não esquecera.



Por todas as minhas desintegridades

me desculpem os Mários, o teatro e a equação da arte

com o bem, mesmo se não more aí o seu maior veículo,

me desculpe o mar além disso

sem totalmente vir ao caso peço só

me possam perdoar amigos que não defendi
.

Monday, January 19, 2015

JB

-->
Tambor, serrote, o cinzeiro roubado
por despeito de mal feito serviço —

agora à sua falta em torno isto
tudo do sofá arrastado à rua
e aspergido à mangueira pelo estofo —

agora ao canto à porta, precioso
na luz do vale que bate a sol posto.

E o amigo, recuperável fosco
regressará?
                   — agora que empeça
em alargar o perro pensamento

sem halo, hesitante e na certeza
da perspectiva que confere o objecto,
da vida o afecto
                           e extenso este
ao uso, à conversa, ao esquema ínvio
                                 da natureza



MC


i. caverna

Esta banda de chapa que não quebra,
o meu diafragma ­— por isso tanto
custa estender um verso ao vento.
Por isso tudo é húmido cá dentro.

Esta prótese que trago pela carne,
minha contracepção — por isso é
que me falta sempre ar e esta merda

não dá broto nem caroço não ar-
ranca não passa de garganta

ii. banda de chapa

Posso batê-la ao sol e surpreendê-la
a faiscar. Não posso não cegar.
Posso, porém, dar cabo de pensar
em mim e me engasgar de azul
à janela
de tanto mirrar olhos e goela

e os pulmões. Posso sair à praça,
dar preço a estes órgãos, perceber
que a minha classe é a burguesia
fora do prazo que os respigas vão
escolher? Nessa parte eu seria
trocada de deítico. Nós os furas,

nós os forasteiros, nós os não-lugar

nós patifes, nós os Chão do Loureiro

que se plantam no fecho do Lidl
para apanhar

nós raid rupestre, hodierna tribo
com nossas narinas de utopia
e caverna


NM


nós e a nossa imensa angst
em posição de feto
na cama de viagem
onde tudo balança
como quando
no ventre da baleia
como quando
se coze a bebedeira
e se destila o cheiro
e se desgasta a líbido
afinal foi fútil
termos vindo

se poupámos nos jantares
para pagar os livros
para aqui pararmos
para sucumbirmos
à ilusão da odisseia
a este quarto sem bagagem
incluído no pacote
da companhia low cost
que se foda
não é só mania
de deitar poias
ao raio da poesia

é que temos contas
a fazer com Deus
não te parece
com a sua bata branca
no hospital do céu
enquanto nós bestas
cheios de cornos
vagimos
pelo bafo plácido
da grande vaca quente
que pasta no abismo
não era nada preciso
termos vindo não
achamos como toda a gente


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