Monday, July 15, 2019

Subsídio à tese das papoilas

Je tape les mots à la machine
métaphorique je traduis le mot
d’autre façon, celui que j’ai appris
je l’oublie
seul son poids me pèse, scintillant

je métempsicause ma parole
ma part d’or dans les mots
vains.

Luiza Neto Jorge, 1993, p. 229

Há um poema escrito em francês por Luiza Neto Jorge, que João Barrento considerou “uma das mais completas explicações do processo de transpor poesia para uma fala própria adentro duma língua” (1997: 250). Diz: je traduis le mot / d’autre façon, celui que j’ai appris je l’oublie. Vai ao encontro da tese das papoilas, de ser preciso esquecer a palavra habitual até chegar a outra maneira, a que exige a fala (coisa da atualização, do presente, e nesse sentido a tradução não é o que vem depois, é o agora, mesmo se o vemos como extemporâneo).  

Estou tentada a traduzir, por causa dessa deslocação do hábito, aquele d’autre façon em contra-fação. Pois escangalhar o hábito pode ser (eu quero que seja) fabrico-outro também para a língua de chegada (ou língua-vaso, recipiente que tem de se esvaziar). Contrafação, porém, coloca holofotes mecânicos, manufatureiros, onde não os há. Ignoro; arrogo-me de uma legitimação que julgo haver ao lado. O poema inicia-se com a “máquina metafórica”, transposição da máquina de escrever em que mecanicamente se bate até se permitir, no esquecimento da palavra mais à mão, a suspensão da memória (será essa vantagem de impelir a máquina sem paixão que nos sugere também Rilke noutro soneto, o 18 da parte I?). Contra-fação também dá jeito pois proporciona a vogal nasalada ã, conducente ao anelo da rima interna com cintilante e vãs, no fim do poema. Ecos ecos. Esse final traz-nos também um reluzir, ma part d’or, que faz voltar às papoilas que rompem no restolho, como a pepita entre a escória, e a vanitas vanitatis das palavras já achadas.

Mas também não há que esquivar a repetição: aquela redundância son poids me pèse pode escavar-se até produzir a sua mudança? Como pode um peso pesar e ser cintilante? Seu peso me carrega. Peso-som a meu pesar.

No primeiro verso do terceto final, o francês de Luiza executa uma finta: je métempsicause, que torna em ação a abstração grega e faz da conversa um acesso à causa, uma moeda de ouro para o cão que nos separa de outras vidas.   

A história da tradução é também uma história de esquecimentos fundados na fé regressiva. Pode ser que não seja possível resgatar e manter, avançar para esquecer (lição de Eurídice, nome cuja etimologia, coitada, se pode fazer remontar a “um vasto costume”). E há os que olharam para trás e ainda assim emergem, sós para serem destroçados.

Contudo, já se devia ter tido pudor. Traduzir e interpretar têm uma tóxica dependência: o primeiro permite o segundo, mas o segundo, na melhor das hipóteses, desvia o primeiro, e na pior imobiliza-o.

A teoria da tradução é pirrónica. A história da tradução é anacrónica.

"O poema recua à medida que as notas avançam" (Steiner). Peso som, grão pesar. 

Já se devia ter tido pudor de ir tão longe no que se diz pelo poema de Luiza. Traduzir é apropriar? Que seja, ainda assim, das formas menos invasivas de ler, a crítica mais abstida, auto-crítica.

Eu bato as palavras à máquina
metafórica eu traduzo a palavra
noutra feição, aquela que aprendi
olvido-a
só me pousa seu pesar, cintilante

eu metempsicoisa eu fala
minha verba de oiro nas palavras 
vãs

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