Foi Paulo Quintela
que me levou a Lutero. Numa palestra intitulada "Traduzir" (1959), em
que vê o "atentado da tradução" como uma "exigência" ou
repto lançado por certos poemas, Quintela refere-se demoradamente à "carta
aberta" com que Lutero justificou a sua tradução do Novo Testamento. Lendo
Quintela com a ideia de que a inscrição autobiográfica do tradutor é indelével
(P. Nikolaou), é tentador projetar nele os atributos que releva
do texto de Lutero: "Ai, traduzir não é a arte do primeiro que apareça
(...); ela ocupa um ânimo piedoso, leal, diligente, reverente, cristão, douto,
experiente, adestrado" (Lutero cit. por Quintela, p. 649). O germanista
parece aderir mais do que simbolicamente à atitude cristã de Lutero (Christlich),
mas esforça-se, como Walter Benjamin, no exercício entre a secularização e a
intuição do sagrado, para dar conta da tarefa do tradutor: "plena
disponibilidade ao serviço do verbo poético alheio". E prossegue:
[O
tradutor] sabe que, fundamentalmente, todo o seu esforço será frustrado. E é
este sentido de frustração íntima que torna amarga e trágica — trágica por
inevitável— a vocação do tradutor, este ser mísero e devoluto ao serviço do génio
alheio, este habitáculo transitório e inglório de alheias grandezas" (p.
649).
O vocabulário é
tão pomposo como piedoso. As suas traduções às vezes também são ambas as
coisas, mas normalmente são excelentes poemas em português. Não porque Quintela
quisesse ou sentisse dever reclamar para si o exercício dum novo poema, mas
porque procurava fundir-se com o texto que se exigia. No pouco que nos conta
sobre a sua intenção tradutória não fala nunca nos seus esforços como se fossem
poema dele. Da primeira vez que nos deu Rilke a ler foi no jornal , numa “Carta
a Vitorino Nemésio para servir de credencial a algumas traduções”, datada de 20
de novembro de 1937, Quintela disse:
Verdade
é que a poesia – e maximamente a poesia lírica – só pode ser recebida por quem
esteja predisposto a abrir-se incondicionalmente a ela e se sentir capaz
de, em certa maneira, aderir e se identificar com o poeta. O trabalho crítico é
posterior e complementar. Nascida de estados afetivos ou emocionais
determinados, a poesia intima ou provoca em quem a lê um estado aparentado ao
que lhe deu origem na alma do poeta (embora, na maioria dos casos, não tão
intensa), e faz do leitor momentaneamente um poeta também. (p. 214)
Aqui está, creio, a melhor demolição
que conheço do artifício dualista por via do qual se opõem os poetas-tradutores
aos outros, ou se debita de tempos a tempos a ingénua pergunta: “Pode
traduzir-se poesia sem se ser poeta?” Paulo Quintela não foi poeta que se visse
em casa própria: os versos que conheço do seu livro Poemas para Dar são
peníveis, e no entanto ele foi um mestre a receber poemas e a
retransmiti-los. Se uma leitura disponível faz de nós poetas, tanto mais o fará
a tradução predisposta de que fala Quintela, colocando a tónica numa atitude
não de apropriação mas de permitir-se ser possuído. Rilke, Holderlin, Trackl,
Brecht, Sachs tornaram-no poeta.
O (então) jovem
tradutor de Rilke utiliza expressões, “aderir e se identificar com o poeta”,
que a crítica literária atual nos leva a pesar, ponderando a vantagem de
substituir poeta por poema. Por sua vez, este movimento leva-me à discussão que
o mais recente tradutor de Rilke para português, José Miranda Justo, faz do
termo “identidade” textual (o que é preciso determinar para traduzir), acabando
por preferir-lhe “entidade textual”, visto que aí o étimo é dinâmico, permite a
revalidação do que faz o texto, e o fazer de novo do poema, poiein. “O que está em jogo é a
manutenção da persistência da entidade do texto, compreendida como conjunto de
tensões flutuantes” (88), afirma Miranda Justo,
defendendo em consequência que a tradução mais próxima da persistência
do texto é a que chama de filológica, amante do logos, da
escavação da palavra como dos padrões e ritmos do discurso. Nisso não parece
diferir muito de Quintela. No posfácio às suas Elegias de Duíno, Justo
reconhece que a tradução de Quintela “é a mais próxima daquilo a que chamo
tradução filológica (embora só de maneira moderada)” (91). O desvendamento
sobre a “moderação” atribuída a Quintela encontra-se, creio, no posfácio de Os
Sonetos a Orfeu: "a sua tarefa era a da 'revelação', na qual era
inevitável fazer oscilar os critérios mais formais e os mais semânticos (…) Com
essa oscilação, e sobretudo com as tentativas de aproximação aos padrões de
literariedade da língua-cultura portuguesa, Paulo Quintela criou (…) uma versão
de Rilke que teve a sua utilidade (e influência), mas que se encontra hoje
distante de poder satisfazer desejos e necessidades que se orientaram
progressivamente mais para as descoberta dos elementos funcionais que permitem
compreender que a especificidade dos textos quem a teia de relações
intertextuais em que eles se movem e a que dão igualmente origem.”
Diga-se que por critérios
funcionais, Justo entende os elementos extrínsecos (normas do contexto) e intrínsecos
(morfologia, sintaxe, redes significantes, etc.) ao texto de partida. Em
Sonetos a Orfeu, Miranda Justo leva a tradução de Rilke a um esforço
limite de “dar ao leitor português na máxima literalidade que pareceu possível
as unidades e as conexões do pensar poético de Rilke, sem qualquer intenção de
‘recriar’ ou sequer e transportar para a tradução aquilo que não é transferível
sem múltiplas e arbitrárias perdas no plano semântico.” O resultado disso, a
que Justo chama também “tradução pensante”, é quanto a mim de uma incrível germanização
do português, onde se segue efetivamente não só o pensar do poema mas também se
ouve, na sobreposição do português, o ruído / resíduo da língua que o pensou.
Porém, também me quer parecer que o enquadramento de Justo se ressente de uma
dualidade demasiado vincada entre o filológico e o re-criativo, ou adaptativo.
Se neste último extremo, ele acaba por reconhecer uma nuance — nem toda a
tradução adaptativa [à língua de chegada] é necessariamente uma obra recriadora,
aí também estabelece uma nova dualidade. E, a partir dela, uma exclusão: os
eventuais méritos da versão de Graça Moura deverão ser “totalmente inscritos no
âmbito da própria obra do poeta Graça Moura, e não discutidos no plano das
funções e objetivos do trabalho tradutivo” (200). João Barrento faz também pelo
menos uma proclamação idêntica:
o poeta que traduz o poeta autolegitima-se (…) O direito que lhe assiste é
um direito pleno no foro poético, embobra possa ser questionável no foro
translatório. Por isso Herberto Helder diz: ‘Não sei línguas. Trata-se da minha
vantagem. (p. 250)
Reconheço que esta citação de Herberto me incensa
e quase me convence: na verdade, Herberto está a desmentir que tudo seja
tradução (se calhar como Rimbaud: “je réservais la traduction”) e lá terá a sua
razão. Talvez a enormidade de Herberto derive mesmo de ter conseguido suprimir
a distância entre o dito e o apreendido, tudo abarcando e tudo criando.
Em todo o caso, aí estou
tentada a também traçar um limite: onde não se conhecem línguas já não há
tradução. Porém, se há um caráter do tradutor, há-de ser o de Quintela,
reconhecer-se relativamente poeta por momentos, situando-se na latitude
de quem recebe, e atentar mais nas possibilidades do que nos limites. Além da
attitude de serviço ao alheio, ele sublinhou uma singular forma de
“responsabilidade perante a nossa própria língua”, não a de conservá-la, mas
antes de não a usar como massa para “incorporar nela matéria estranha (…)
perfeitamente”, fixando-a do mesmo modo definitivo como faz um original” (o
poema fixa, a tradução substitui…). E desabafava: “Técnica de tradução? Não há
técnica de tradução. Ou melhor, há milhentas técnicas, tantas quantas os
tradutores, tantas quantas os poetas se não os poemas” (p. 650). Por isso é que
Paulo Quintela, apesar de me parecer il miglio fabbro, tem de continuar
a ser substituído.
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