Maria Irene Ramalho homenageia-o assim: “Temos a poesia da prosa portuguesa
reinventada n’Os Cadernos de Malte Laurids Brigge” (2008: 39-40). Mas
foram sobretudo poetas, os que da literatura portuguesa pós-1945 aderiram ao
Rilke que Paulo Quintela traduziu, de tal forma que se poderá dizer que
poéticas tão diferentes como as de Vitorino Nemésio, Miguel Torga e Herberto
Helder terão sobretudo em comum esse ouvido das traduções de Quintela.
Posto que Rilke, constatou David Mourão-Ferreira (depois também seu tradutor),
se tivesse feito sobretudo como poeta a procurar um ver de novo, o que o
levou a Rodin como à viagens (ver 1973: 21).[1]
Acontece que as
traduções de Quintela desarmaram inauditamente a própria língua portuguesa “no
rigor a fogo / das palavras exatas e sofridas”, para usar uns versos sobre Hölderlin dedicados por Nemésio ao amigo Quintela (2007: 483). Possivelmente,
seria preciso alguém que, como Quintela, se pacientasse num doutoramento
(concluído em 1947) sobre A Vida e a Poesia de Hölderlin para colocar tanto
afinco no desencastramento de uma língua. Mas foi Rilke a primeira paixão
daquele homem que, do seu dificultoso berço
em Bragança, teimou no ingresso na Faculdade de Letras de Coimbra que lhe havia
de abrir os cordões de uma bolsa em Berlim, de onde regressaria em 1933 com uma
mulher e uma ameaça (a ascensão do nazismo) para a breve trecho se lançar nas
suas primeiras “tentativas baldadas” de “adaptações” do polimorfo Rilke (1938:
215). Notamos-lhe aí a paixão, como a humildade, que o levaria ao maior
contágio do estrangeiro na literatura portuguesa pós-guerra: “Eu suponho que o
poder poético de Rilke é tamanho que supera mesmo as deficiências naturais
(naturais minhas, entenda-se!) e inevitáveis (porque é impossível transpor
para português estados poéticos que foram vividos em alemão)” (idem). Seria impossível,
mas Quintela tentou-o, e daí, do seu íntimo desejo, “mal dito”, de superar as
suas “naturais” tendências, o extravasamento do que até aí se fazia, a naturalização
da língua.
Quintela usou traduzir ad contrario, não imaginando-se o poeta a
escrever como se tivesse sido português, mas antes aventurando-se a pensar-se
que a importação da língua estrangeira já faz meio poema. Porque desaloja o
hábito da língua. Veja-se como ele lidou com “Herbsttag” e trabalhou uma
distinção supostamente inexistente no ramo anglo-germânico, entre “ser e
estar”, a partir daquela palavra tão recorrente em Rilke, bleiben (um
“permanecer” que indica, provavelmente, um de-morar), para inverter a oposição
costumeira: “Quem agora
está só, longo tempo o será” (Wir jetzt allein ist, wird es lange bleiben).
Na íntegra, foi assim que Quintela nos deu a ler “Herbsttag”:
Dia de Outono
Senhor: é tempo. O Verão
foi muito longo.
Lança a tua sombra sobre
os relógios de sol
e solta os ventos sobre
as campinas.
Manda que os últimos
frutos se arredondem;
dá-lhes inda mais dois
dias de calor,
leva-os à perfeição e
faze entrar
a última doçura no vinho
pesado.
Quem agora não tem casa,
já não vai construí-la.
Quem agora está só, longo
tempo o será.
Fará vigílias, e lerá,
escreverá longas cartas
e vagueará, de cá para
lá, nas alamedas,
agitado, quando o vento
arrasta as folhas. (Rilke /
Quintela 1938: 222-223)
O desencontro esperado (mais do que vivido) para a velhice do homem, como
para o tempo em queda (o Outono) está lá. Quintela escreveu isto perto dos 30
(tinha 31 pela data que inscreve na carta a Nemésio), próximo em idade de Rilke
quando lhe botou a pena, e suspeita-se que para a sua vida a previsão do
desamparo fosse um presságio constante (ver Aguiar 2005). Caprichou na
aliteração das folhas revolteantes (com a alternância entre [v] e [l], e ainda
os [ʃ]
e os [ʀ]) e
acrescentou-lhe uma opção – um uso de futuro (será, fará, escreverá,
vagueará), que talvez não pareça fruto do original (construído perifrasticamente,
com modal, wird + infinitivo, como mais habitualmente o faz o português,
“vai permanecer”, “vai escrever”), e no entanto arranha, como arranha vento, e
arranha, wird.
Quintela chama trágica à atividade do tradutor, fica insatisfeito
com o que faz – a única alteração que ele introduz a “Dia de Outono”, quando o
publica em livro em 1943, não deixa de ser sintomática de deslocação – dele, e
de Rilke. Onde estava gib ihnen noch zwei südlichere Tage, ele primeiro
traduziu por “dá-lhes inda mais dois dias de calor”. Isso, porém, seria banal e
doméstico – é a experiência do nosso verão, que o outono vem substituir. Contudo,
no vivido em alemão essa era uma experiência escassa, vinda do sul, isto
é, do alheio. Quintela fica desassossegado por transportar o alheio para o
doméstico, e depois lá encontra a palavra estranha, “meridionais” (que
entra no labirinto das confluências e divergências literárias, remontando, penso
eu, à oposição de Madame de Stael, entre os povos du Midi e os povos du
Nord); substitui assim: “dá-lhes inda um par de dias meridionais” (Quintela 1998, III: 67).
[1] O contágio das imagens
de Rilke foi no Ocidente mais ou menos universal mesmo que assíncrono; por cá,
terá até levado ao exagero de alguns que, despencados do surrealismo, se
refugiaram no “angelismo cego” (Barrento in Hatherly 1999: 12) e que Jorge de
Sena apodou de “Rilkinhos” numa invetiva satírica de 1961 (cit. in Saraiva 1984: 22). Eduardo Lourenço também satirizou: “"Como
num filme de Hitchcock invadido de legiões de pássaros apocalípticos, coortes
de anjos balizam o céu (ou o purgatório) da poesia portuguesa dos últimos vinte
anos" (1974: 149). Para uma resenha mais sóbria sobre a questão, ver
Horster 1996 e Lage 2010.
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