Comecei pelo
“Herbsttag” pois este antecipava o que realmente ainda não sei, os anos de
envelhecimento prenunciados por ter vivido já metade da vida. Rilke muito menos
o sabia, ele tinha 27 anos quando o escreveu. Conhecera Lou Andréas-Salomé (quinze
anos mais velha, que amou), casara e separara-se de uma escultora, estava no
início do encontro com Rodin. O poema fala do tempo, e posta a vida, foi
o ter lido que o poema “Corona” de Celan (o tal das papoilas) o glosava (ver
Felstiner 2001: 53-51), que acabei por desembocar em Rilke e o escolher para
início da minha expedição alemã. Celan seria muito atrevimento. É possível que
a antologia Sete Rosas Mais Tarde, de João Barrento e Yvette Centeno,
tenha produzido em mim, como noutros contemporâneos de juventude, um desabar de
estratos de língua e articulação de imagens, bem semelhante ao anteriormente vivido
pelos leitores portugueses do Rilke de Paulo Quintela.
Quando escreve
“Corona” Celan tem também 27 anos, é 1947, perdeu os pais na treva do
Holocausto, fugiu ele próprio de um campo de exterminação, está condenado a
escrever na língua dos seus carrascos. Vindo de Bucareste, em trânsito para
Paris, conhece em Viena Ingeborg Bachmann, filha de nazi, com um lastro de
despedaçamento nos seus próprios poemas. Ele enche-lhe o quarto de papoilas,
amam-se, são grandemente incompatíveis mas têm uma vida artística à frente, e
aquele poema “Corona” quer muito crer que da “pedra” brotará a “flor”, que o
outono afinal poderá mover o coração, que será tempo de se saber (que nos afrontaram
e humilharam e mataram e que agora acabámos de nos amar), sobretudo quer dar
hipótese à vida. Em Sete Rosas Mais Tarde, a tradução deste poema por
acaso é problemática, mas para mim foi fértil a sua tresleitura da primeira vez
que Celan me apareceu, eu tinha 19. “Corona” coube, segundo indicação do índice
da edição da Cotovia, a Yvete Centeno, que provavelmente se enganou ao traduzir
zum Geschlecht der Geliebten, por “ao sexo dos amantes” e não “ao sexo
da amada” (como em todas as outras versões que conheço). Gramaticalmente, aquele
genitivo também pode ser plural, e a opção de Centeno, mais estranha, reforça uma
pungência de distanciamento e empenho do sujeito poético (um olhar que observa
de outro espaço, através de vidro, mas tem de descer ao belo que há no fundo e
no escuro),
O
outono come da minha mão a sua folha: somos amigos.
Tiramos às nozes a casca do tempo e ensinamo-lo a andar:
o tempo regressa de novo à casca.
No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala verdade.
O meu olhar desce até ao sexo dos amantes:
olhamo-nos,
dizemos algo de escuro,
amamo-nos como papoila e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
ou o mar no brilho-sangue da lua.
Ficamos abraçados à janela, olham para nós da rua:
é tempo que se saiba!
É tempo que a pedra se decida a florir,
que ao desassossego palpite um coração.
É tempo que seja tempo.
É tempo. (Rilke / Barrento e Centeno 1993: 13)
Tiramos às nozes a casca do tempo e ensinamo-lo a andar:
o tempo regressa de novo à casca.
No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala verdade.
O meu olhar desce até ao sexo dos amantes:
olhamo-nos,
dizemos algo de escuro,
amamo-nos como papoila e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
ou o mar no brilho-sangue da lua.
Ficamos abraçados à janela, olham para nós da rua:
é tempo que se saiba!
É tempo que a pedra se decida a florir,
que ao desassossego palpite um coração.
É tempo que seja tempo.
É tempo. (Rilke / Barrento e Centeno 1993: 13)
Estamos a
falar de Celan, glosando o tema do tempo em Rilke, e isto interessa-me, na
medida em que me interessam poetas, como tradutores, transferindo para outros
uma reflexão sobre o decurso temporal. E que isto acompanhe o tempo e idade
transcorridos no pensamento de ser ainda possível a poesia. Creio que está aí um
possível entendimento do título, “Corona”, e foi lendo Paulo Quintela que me
ocorreu a intertextualidade com a poética rilkeana ser ainda mais densa e
agónica. Quintela, da primeira vez que mostra Rilke aos portugueses – estamos
em janeiro de 1938 num país onde a guerra passará ao lado – é por via duma
carta, que dirige a um amigo (V. Nemésio) e connosco compartilha; ou, pelo
menos, é o efeito gerado pelo dispositivo com que nas páginas da Revista de
Portugal (vol. 1, nº2) se vai conduzindo o leitor pela mão ao longo de umas
vitrines de poemas de Rike em português. O germanista tradutor apresenta-nos
dois poemas do ciclo Mutter como prova da “saudade da origem, o calor
escuro do ventre materno” (Rilke/Quintela 1938: 216), para a seguir imaginar o
poeta como sujeito da “pressão surda” (217) da sua coroa imaginária (o terceiro
livro de Rilke intitula-se Traumgekrönt, “coroado de sonho”):
Talvez tenha morrido há muito
já o brilho das pedras,
talvez mo tenha roubado o meu
hóspede, a tristeza,
talvez as não houvesse mesmo
na coroa
que recebi (Rilke / Quintela 1938: 218; tradução
de I, 263 de Früe Gedichte)
Em “Corona”,
Celan parece apostado em desmentir tudo isto – ou em restituir? (repetindo o
anterior, rasgando e resgatando onde falhou).
3 comments:
«Comecei», e não «começei», como aparece a abrir os dois primeiros parágrafos.
ui que vergonha. Obrigada, já emendei.
Não é vergonha nenhuma. Deslizes todos temos.
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