como dizer aquilo que atrai e finca à linha férrea
onde a dúvida não cobra onde me desassoreio
onde sou fera sem labirinto e reta é
tão lânguido o embalo
do total isolamento com vista para os lados
do tempo infinito com entrada para o interior
o fôlego mais que o sufoco o ir mais do que vir
o cruzamento ignorado o destino levemente
apenas pressuposto, tão repleto o transbordo
da janela o olhar em roda sempre paralelo
e vertical à terra
tão incessante
motivo de espanto é que não caiam das nuvens
novelos de herbívoros
nem o resto que é levantado levado
torcido e lavado nos lilases da manhã
recém-cosida, líquida, tão esquisito o trabalho
a escada onde se alça
a mulher varejando a oliveira, rio a seguir a videiras
no outono beirão, tão andaluz o vapor
desta hora neste vidro do vagão, tão espaçado o pavor
que tremendo
se entorpece, as cores do céu homéricas
de onde o mundo veio, rude vagir da matéria
quando bebé, tão inicial o som, carril
do mundo que range na pauta por fixar
o ruído mais indígena inventa a música
quando se parte (o ir mais do que vir) cheio de férias
e fermento
abundantes encostas de trevo musgo vertigens
impossíveis choupos, depois arados campos e
tudo quanto faísca, consigo, cantiga, grite também
tão santo o pinheiro louro, suas ávidas
agulhas
esta fartura, tão ebuliente o segredo, ferve tal
como laranjeiras com o milagre do sol por trás
(os fabricantes de lápis imaginariam
aparas de carvão para traçar no papel
o trejeito do pasmo, mas toda a arte retratista é
tão curta para reter a luz)
deslumbram os sentidos
silhuetas ainda frescas desta hora como ardósias
e o tão monstruoso grande furta-fogo
que envolve tudo filtra as cruciantes cores
e merecem fervores não regateados, prenhes
de absoluto
tão breve afinal o túnel em que se atravessa
a verdade, passa
tão tangível que já foste, claro
Divino
por quem a treliça do mundo se colocou
em marcha, pequenas fagulhas pulsam no rio
ainda forjam uma visão, mas as aves grandes
nos penedos dificilmente se deslumbram
com os utensílios que restam na linguagem
tão vazia e tão pouco o necessário
para realmente uma longa viagem
vale
que lépida que transparente que tão azul
passa a ponte sobre patins e cava ainda
um declive, um subsídio à litania, ao consumido
carrossel
tão saturado, à poesia com o vinco tão lindo
da sua tristeza, raio
baixo, abrando, rio
a
brindo
(Intercidades Lisboa-Vila Velha de Ródão, 24/11/18 e 26/07/20)