Wednesday, August 26, 2020

meta saudade

No meu sonho o sol da tua fénix
é contra-luz do meu vulcão[1] e triste
travo a cinza—na língua da manhã—


sendo o apego uma tenaz do cérebro,
eu pensava sepultar o agravo
mas a manhã também ia no féretro...


[1] No meu vulcão a relva brota —
Um ponto meditativo,
Pouso atraente ao Pássaro –
Toda a gente pensaria.

Tão vermelho em baixo o Fogo
Ferve. Vacilam os pisos seus —
Se o revelasse, povoaria
Minha solidão com o Tremendo.  (Emily Dickinson)


Saturday, August 22, 2020

vai vagão

como dizer aquilo que atrai e finca à linha férrea
onde a dúvida não cobra onde me desassoreio
onde sou fera sem labirinto e reta é
                                   tão lânguido o embalo
do total isolamento com vista para os lados
do tempo infinito com entrada para o interior
o fôlego mais que o sufoco o ir mais do que vir
o cruzamento ignorado o destino levemente
apenas pressuposto, tão repleto o transbordo
da janela o olhar em roda sempre paralelo
e vertical à terra

tão incessante
motivo de espanto é que não caiam das nuvens
novelos de herbívoros
nem o resto que é levantado levado
torcido e lavado nos lilases da manhã  
recém-cosida, líquida, tão esquisito o trabalho
   a escada onde se alça
a mulher varejando a oliveira, rio a seguir a videiras
no outono beirão, tão andaluz o vapor
desta hora neste vidro do vagão, tão espaçado o pavor
que tremendo
se entorpece, as cores do céu homéricas
de onde o mundo veio, rude vagir da matéria
quando bebé, tão inicial o som, carril
do mundo que range na pauta por fixar

o ruído mais indígena inventa a música
quando se parte (o ir mais do que vir) cheio de férias
e fermento

abundantes encostas de trevo musgo vertigens
impossíveis choupos, depois arados campos e
tudo quanto faísca, consigo, cantiga, grite também
tão santo o pinheiro louro, suas ávidas
agulhas
esta fartura, tão ebuliente o segredo, ferve tal
como laranjeiras com o milagre do sol por trás
(os fabricantes de lápis imaginariam
aparas de carvão para traçar no papel
o trejeito do pasmo, mas toda a arte retratista é
tão curta para reter a luz)
 deslumbram os sentidos
silhuetas ainda frescas desta hora como ardósias
e o tão monstruoso grande furta-fogo
que envolve tudo filtra as cruciantes cores
e merecem fervores não regateados, prenhes

de absoluto
tão breve afinal o túnel em que se atravessa
a verdade, passa
tão tangível que já foste, claro
Divino
por quem a treliça do mundo se colocou
em marcha, pequenas fagulhas pulsam no rio
ainda forjam uma visão, mas as aves grandes
nos penedos dificilmente se deslumbram
com os utensílios que restam na linguagem
tão vazia e tão pouco o necessário
para realmente uma longa viagem

vale

que lépida que transparente que tão azul
passa a ponte sobre patins e cava ainda
um declive, um subsídio à litania, ao consumido
carrossel
tão saturado, à poesia com o vinco tão lindo
da sua tristeza, raio
baixo, abrando, rio
a
brindo

(Intercidades Lisboa-Vila Velha de Ródão, 24/11/18 e 26/07/20)

Monday, August 17, 2020

Salvar o pai

Poesia terapêutica ou lá que seja isso ­—
um dizer após o instante desinsuflado por um truque doloroso?
ou pior depois de outros terem dito
e só depois de fazerem filamento do que sofri?
não se obtêm novidades por poemas — já o disse
William Carlos Williams — quando menos curas 
ah os que morrem! por sua falta — hubris — diria
já uns quantos definharam entretanto  — meu pai agora
pode perder um olho — o outro chora na névoa
de anterior flagelo — diria que até isso — falta
ou descaso meu (vazio que me fará como vidente)?
eu uso para entornar — petróleo-fuel e carvão —
no verso fóssil — pateta impotente — furor febril
fútil de incesto e de galope — antes que isso
um laboratório da imaginação em nível
com música pueril de esferas para acalmar — tipo
mobile a girar — eu criança projectava
fantasias interditas nas lâmpadas apagadas — tu
vinhas — pai — acendê-las para as dispersar —  então
abria os olhos para tuas órbitas austeras — facas bonitas.

Yeats e Sena: diálogo libidinal

A Espora

Horroriza-vos que a fúria e a lascívia
Sejam dançada atenção desta velhice;
Nem jovem tinha eu tal aflição, outrora;
Que resta agora para ao canto me dar espor(r)a?

[não é a minha cabecinha que faz o lenocínio, é a do Jorge de Sena, que colocou a versão inglesa deste poema como epígrafe à sequência "Estados Unidos da América" onde aparecem estes dois sonetos; e ainda estes versos finais de um extenso poema sobre o Zorba, the Greek:

Mas sim o viver com fúria, este gastar da vida,
este saber que a vida é coisa que se ensina,
mas não se aprende. Apenas
pode ser dançada.]

Tuesday, August 11, 2020

Traduzir Gerard Manley Hopkins

Traduzir é um problema matemático de pensamento mágico. Tornar, ou pretender, duas palavras um mesmo resultado. Há poetas que o fazem na própria língua, como Gerard Manley Hopkins, e então uma coisa se torna – não, gera -  duas palavras. Forçá-las a voltar à unidade é calar a infernal dualidade.


Não, não concebo, pútrido conforto, Desespero, ou de ti cobiçoso me nutrir.
Nem deslaçar – frouxo sendo - do Homem os esfiapados troços
Por dentro, ou, mais que exausto, posso eu jamais chorar. Eu posso;
Pode algo, a esperança, esta ânsia por manhã, querer não existir.
Mas ah, mas ó Tremendo, porque rudes teimas me cingir
Ao jugo-mundo de teu destro pé de pedra? tal leonina pata contra mim? Destroço
De meus ossos, mercê de teus famintos olhos tenebrosos; e me zurzir
Rondando proceloso, eu empilhado ali, febril por te evitar e me evadir?

Pra quê? Pra me livrar da casca, me assentar o grão, claro e âmago.
Não, por entre tal labuta, luta, desde (creio) que beijei o madeiro,
Ou foi a mão, ah, coração! a força me subindo, júbilo furtado, ri, dei palmas.
Mas a quem, palmas? ao herói, bulindo com os céus, que me jogou rasteiro,
Seu? Ou eu que o combati? Ó qual deles? ou cada qual? Tal noite, naquele ano
De breu já dissipado, biltre, me vi deitado à briga com (meu Deus!) meu Deus.

Sunday, August 02, 2020

De ser a natureza um fogo heraclitiano e do consolo da Ressurreição


Nuvem-fiapo, tufos de pelo, revoltos travesseiros | airosos se arvoram ala-
Meda de ar: fanfarrões do céu, galhardos gangues | são bandos, brilham desfilando,
Por chapisco a pique, por estendal de cal, | onde quer que um olmo arqueie,
Lucíreos e sombriteias de azougues | longos rendam, rompem, cerceiam.
Faceiro, o vento claro clamoroso | flagela, varre, esfrega a terra inteira
Dos vincos do passado temporal; | os regos encrostados, charcos, seca.
Soltando o lodo para o lêvedo | solo, pasta, pó, estanca, estaca
Máscaras sulcadas, humanas marcas | por labor ali aradas
E cardadas. Carburando massas,| a sarça da natureza arde
Mas debela o seu dilecto,| a chispa que mais lhe inere e é
O Homem, seu lume impresso, |seu timbre no intelecto, cessa!
Ambos estão num insondável, | tudo é treva imensurável
E submersa. Ó piedade e indig | nação! Forma humana irradiando
Errante, estilhaçada, estrela | a morte negra mancha; nem marca
Em qualquer parte disso se destaca
Mas a amplidão desbota e o tempo | nivela. Basta! A Ressurreição
Vibra, coração! O sôfrego pesar, | os tristes dias, a melancolia, vão.
Sobre meu náufrago convés acendeu-
Se foco, clarão constante. A carne | apaga, e a mortal escória
Cede ao verme residual; o louco | fogo do mundo em cinza morre:
Num repente, ao toque do trompete,
Súbito sou o que é Cristo, | porque ele foi meu semelhante, e
Este tipo, farsa, miserável caco, | bocado, lasca, imortal diamante
É imortal diamante.

Saturday, August 01, 2020

diga-se da palavra temporão

as dimensões da casa e das cartas
e ainda o fogo foi um esforço agarrarmos
as mãos aos jarros movendo
a frescura do líquido num humor
permeável e benigno, diga-se
os jarros ou as mãos, sanguessugas
no lodo como nós comunicando-se
diga-se: ser do lagostim, elevando-se
com vontade de bichos que se lambem

esvaziámos sacos, trazíamos os fatos
para o banho, as patranhas e o fervor
achando sucessivas divisões ancestrais
reencarnadas nos andares superiores
espíritos que éramos treinados
na livre associação
o plano movediço, instável, propício
a derivação conjunta
por sonhos contíguos fluviais suspiros
vazando, diga-se escotilhas da memória
atravessadas com tendões azuis, diga-se
golfinhos cometas do interior

não nos medimos mas tão pouco sarámos
fundámos ou dissolvemos, só repartimos
frutos púmices de textura redonda
e polidez de osso, sem ninguém
ter de contar, não seria um mau
início de conversa, mas não há
também que topar logo um sinal.
Aliás:  não sendo como se sempre
nos tivéssemos conhecido devagar
abrimo-nos tanto verde e sementes

máquinas plantadas para a escrita
eram concerto discreto repto
que tacitamente aprouve atrasar
em favor da tradução humana
diga-se que fazia um calor a luz
produzia singularidades apreciáveis
e a noite temperando o suspenso
tempo produzia álcool, a semi-lua
uma flecha, além de que longe
nos poupava e lembrava a nuvem
estancando a veia de um incêndio

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