à falta de melhor vício, eis um agarrado profundo.
Thursday, August 29, 2019
Monday, August 26, 2019
Termas e cabaré
Foi preciso furar os poços para se livrar o Kaiser
da cobiça do sal, pois deles jorrou nascente (disse
o piedoso clérigo) numa terra onde a gente era feras
e comia pedra
mandou obra de banhos públicos, à imagem de domus
de vila clássica com veredas, pórticos, câmaras
numa planta onde gente ardera, vestindo cinzas
na sua fuga
os líderes nunca param com suas melhorias: o prédio
a seguir era brique et pierre,
desta feita neoclássico
palácio, com mãos de gente destruída igualmente
por fome e vilania
disparando contra estátuas, sem que voltassem os nervos
ao sítio, onde se instalou o vício, onde vulgares diabruras
emanaram de gente repleta de espírito, involuntárias
judiarias
em caves com pinturas escarlates de medo, a serradura
traçada por foles de luz, relíquias de tabaco onde a trilha
leva os crentes ao fim (disse, de passagem, o platónico)
a gente falha
a gente falha
daqui a anos terraplanarão tipos, raças, onde as raízes
uns dos outros? falareis de nós como dum sonho (disse
Jorge de Sena) com muita calma, querida gente
tão obscena.
tão obscena.
(Bad Oeynhausen, 24 de agosto de 2019)
Sunday, August 25, 2019
[na cabeça do sonho: românticas cobardias]
Encontraste o primeiro namorado no passeio da rua iluminada. Trazia a família, desdenhosa, com ele. Tu também tinhas a tua. Era à porta de um cabaré onde tinhas ido com A. e suas amigas. Antes combinaras com a tua professora de piano recomeçar as aulas, seria depois do cinema, à meia-noite, mas era óbvio que não chegarias a tempo. Caía uma fita de papel. Dizia Le Déclin du romantisme. Aí entrava outro velho mentor, de quem gostavas, mas embaraçava-te que ele testemunhasse a tua falta de coragem. Era ele quem sabia que não tinhas conseguido saltar de um muro ao outro num ângulo de queda absurda. Cassady preenchera a falha no declive para que Ginsberg o fizesse. Kerouac fizera-o separando o fígado como uma bola lançada, depois com uma palhinha chupando-se de volta. Isso vinha no On the Road II, integrado por sua vez no tal Déclin du romantisme, de que também havia exemplares com o título Le Romantisme du romantisme. O teu velho mentor só queria que te soltasses um pouco. O teu velho amante era bom de abraçar, não tinha mudado. Guardara todos os bilhetes que lhe mandaras ao longo dos anos, nunca lhes respondera mas investigara sobre eles. Por exemplo, a foto de duas meninas anorécticas, uma notícia sobre a teoria da terra perfurada. Lamentava que te tivesse faltado a maturidade, agora era tarde, e tu ficavas ali no corpo dele a pensar o que fazer com as miúdas lá dentro, hesitando sobre bater à porta da velha professora, imaginando-a pesarosa no primeiro andar de onde não se podia mexer, interrogando o que seria preciso para desfazer a incapacidade de saltar entre dois muros, tentada ao subterfúgio de pular as páginas do livro e achando-te, por isso, falsificadora.
Thursday, August 15, 2019
último folhetim duma sequela alemã: de Sonetos a Orfeu, 1ª parte, 22 (II)
Eu estava a tentar evitar interpretar o soneto 22 dado o
dano do contágio sobejamente explanado. Porém, o pensamento sobre (re)ocorrências
e a verificação de que “Herbsttag”, de 21 de setembro de 1902, termina com treiben
(um tremer das folhas, associável aí, parece-me, ao “tempo”, sobre que se
interpela o “Senhor”) e, volvidos vinte anos, o soneto 22 principia com o tal Treibenden,
faz-me especular. Se há algo em que concordam os críticos de Rilke que li é que
não há fio, por mais esgarçado, que se possa tecer em torno dos vários livros,
que ele estava constantemente a guinar de rumo, de instrumentos, de formas.
Apontam-se-lhe fases. David Mourão-Ferreira (1976) traçou-lhe, em vez de fases,
uma espécie de crises — três — mas começou-as em media res (passando
assim por cima dos primeiros livros bem como de acontecimentos, na viragem do
século que reconhece, todavia, como marcantes), exonerou-se de as apresentar de
forma cronológica, antes como “instantâneos”.
O primeiro é 1902-3, Rilke tem 27 anos e conhece Auguste Rodin – para
aprender o que ele via, escreve um primeiro ensaio sobre este, Cartas a Um
Jovem Poeta, e concomitantemente completa O Livro das Horas e O
Livro das Imagens (onde está “Herbsttag”), mais tarde Novos Poemas e
Os Cadernos de Malte Laurids Brigge. O segundo é 1912: em Duíno, Rilke
tem a revelação que lhe sugere os primeiros versos da primeira das Elegias que
só dez anos mais tarde concluirá. No terceiro, 1922, passada a guerra e a
mobilização para o exército austríaco, Rilke regressa a Duíno, lê e depois
encontra Paul Valéry.
Se As Elegias de Duíno eram, segundo
Mourão-Ferreira, o “desafio a todas as modalidades de poesia
rigorosamente intelectual” (1976: 23), o encontro com Valéry irá deslumbrá-lo
tanto como perturbá-lo: admira-o, mas Valéry é o poeta da composição contra a
inspiração, do laboratório quasi-científico do verso. Em todo o caso, para
Mourão-Ferreira, Rilke reage com a revolta (de Orfeu), e excede-se a “realizar,
nos últimos cinco anos que lhe restarão de vida, alguns dos seus mais belos
poemas em língua alemã e ainda as suas mais significativas experiências de
poesia em língua francesa” (idem). De Sonetos a Orfeu, diz serem
testemunho de “um súbito florescimento” (16), contanto os arrole no mesmo
ímpeto de inspiração e anti-intelectualismo das Elegias (e foram
escritos de um jato, em sobreposição às últimas destas). Miranda Justo apoia-se
em vários críticos para nos apresentar uma narrativa semelhante. Mais:
afirmando que a separação entre as elegias e os sonetos consiste na
“metamorfose” do lamento ao cântico (e é interessante o que diz sobre os
sonetos como permissão para ouvir e se deslocar enfim da visibilidade à
“invisibilidade vibrátil” – 2005: 189), este mais recente tradutor dos sonetos
apresenta-os inequivocamente como “no plano da discursividade, a introdução de
uma tonalidade de ‘celebração’, de ‘invocação’ e ‘evocação’, de ritual de
‘consagração’” (2005: 187).
Tenho uma visão mais pessimista e moderna (menos
romântica) dos Sonetos a Orfeu. Reconheço que a “consagração” consegue
aí momentos jubilosos — de resto, também lá está no soneto 22, num outro verbo
(re)ocurrente de Rilke, weihen (precisamente sagrar, inaugurar, iniciar
[no mistério]) e que eu traduzi de modo fraco, “primeiro nos anima” (para erst
weith un sein). E porém, julgo ver nele, como noutros do conjunto em duas
partes, um outro tremor, treiben, que já não é o da vida discorrer
pertencendo no limite a uma outra entidade que nos elude (Deus?), mas o de ser
substituída pela máquina (que Rilke viu ser destruidora na guerra e velozmente
ascendente na reconstrução posterior), Treibenden, interferindo no tempo
da permanência (e vai grande distância deste, quando o envelhecer se torna
real, ao que foi imaginado com ansiedade em “Herbsttag”). A permanência,
alegar-se-á, acaba por ser reafirmada no soneto 22, mas não deixa de subsistir
nele o receio do novo, que é mecânico e pode ser nocivo, consubstanciado
não apenas, creio, em Treibenden, como em Flugversuch (literalmente,
“testes de voo”). Corroborante com esta leitura, vejo o soneto 18: “Ouves o
novo, Senhor, / ribombar e estremecer” – na tradução de M. Justo, 2005: 47) — das Neue, Herr, eu ouço, e parece-me tomar (não por continuidade, mas precisamente por
repetição e ruptura) o anterior Herr,
es ist Zeit (de “Herbsttag”). No
soneto 18 (1ª parte), aliás, comparece a máquina, com bastante ominosidade:
“como gira e se vinga / e nos desfigura e enfraquece” (idem), regressa no
soneto 10 da segunda, num célebre verso “Todo o obtido ameaça-o a máquina”
(2005: 85), e ao longo de todo o livro, esparsos mas com uma dicção diferente
do que conheço do Rilke anterior, elementos da modernidade mecânica assomam (“luminosos
perfis”, “rijo aço”, “aparelhos”, “caldeiras de fogo” e “martelos”) e fazem-no
apenas nostalgicamente romântico mas já dialogante com o modernismo, quiçá o
futurismo de outros pares. Pelo menos, assim entendo o desdém: “porém a parte
da máquina / quer agora ser louvada” (1: 18, Rilke/Justo 2005: 47). Nesta
linha, o título Sonetos a Orfeu terá um ressaibo: o poeta pressente que o
novo pode estraçalhar, mas delibera/prefere/não resiste olhar para trás. O
ensaio de novas formas – como o encurtamento do metro do soneto 22, promotor da
velocidade de leitura — também concorre para este diálogo.
Treibenden re-ocorre,
com uma colocação vocabular muito semelhante, no soneto 27 da segunda parte: die wir sind, als die Treibenden (e
também em contraste rimático com bleiben),
mas as duas traduções portuguesas que conheço onde se encontram ambos os
sonetos optam por uma diferente escolha. Graça Moura usa primeiro “quem se
apresse” (I, 22 – 1994: 30) e depois “se nos precipita” (II, 27 – 1994:63);
Justo opta por “os que impelem” (I, 22; 2005: 55) e “os que movem” (II, 27;
2005:119); . Há outras duas traduções do soneto 22: Quintela escolheu “pressurosos” (1998: 191) e David
Mourão-Ferreira “apressados” (2003: 52). Mantenho que Treibenden ganhe em ser traduzido da
mesma maneira nas duas instâncias, de uma forma que seja pelo menos ambivalente
(permita a carga disfórica) e de preferência com sugestão maquinal. A minha
“propulsão” ainda não me satisfaz, até porque pelos vistos carece desta longa
nota, e não vale a pena explicar a anedota. Em todo o caso, “propulsão” evita
contaminar o leitor com uma intuição que pode ser só minha – e na minha idade –
Tuesday, August 13, 2019
Monday, August 12, 2019
Herbsttag II
Senhor, é tempo. O Verão foi muito longo.
Põe nos quadrantes já sombras escuras
E nas planuras larga o vento à solta.
Obriga os frutos a que se encham mais;
dá-lhes do sul inda dois dias quentes,
leva-os à perfeição e faze que entrem
no vinho denso as doçuras finais.
Quem não tem casa já não vai erguê-la.
Quem esteja só, fica mais só agora,
Lendo, escrevendo cartas, altas horas
ou, dum lado para o outro, na alameda,
Inquieto andando, enquanto as folhas correm. (Rilke/Carvalho 2003: 243-44)
Os tradutores arranjam geralmente uma marca para
se distinguirem dos outros, ou então para servir os seus planos de ação. Neste
caso, há uma palavra, Fluren — dependentemente do género poderá querer
dizer “corredores” (masc.) ou “campos” (fem.), e sendo plural no poema podiam
ser ambos, embora o contexto aponte claramente para o segundo — que todos
traduzimos diferentemente: Quintela
optou por “campinas” e Carvalho por “planuras”, mantendo-se fiel ao género
original da palavra (embora as “planuras” sejam discutíveis, pois se tornam
demasiado coesas com a questão do “sul”). Maria João escolheu “campos”, Graça
Moura “prado” e eu “campos lavrados”. Defendo a minha escolha por o étimo da
palavra indicar “terra arável” e por querer rimar (embora imperfeitamente) com
“demorado”, no primeiro verso. Depois de assim me ter obrigado a percorrer as
ocorrências tradutórias bem como as ocorrências de Rilke, reconheço que há duas
escolhas minhas bastante idiossincráticas: uma delas é a palavra “cirandar”,
mas não desgosto para “wander”, a outra é mais discutível e trai as redes
significantes que parecem ser tão importantes na poesia de Rilke. É no segundo
verso da primeira estrofe, onde encontramos o famoso bleiben, de que já
falei como mostrando um estado continuado do ser (para Quintela) ou
“permanecer”; literalmente, pois, o verso diz “Quem agora está só, vai assim
longamente permanecer”. Eu, acarinhando as minhas rimas-por-trás-da-orelha,
decidi que precisava do eco de “extensas” e “densas”, e aproveitei por
introduzir uma palavra que reconheço mais da minha sensibilidade do que
rilkeana: “vai continuar carente” — e era preciso deixar margem para se calhar
esta solidão permitir a plenitude de amar sem objeto, que João Barrento (1996)
entende como corolário de As Elegias de
Duíno.
Subscribe to:
Posts (Atom)