No final de Huck Finn os rapazes, ávidos
de cabeças a prémio e melodrama,
ocultam a Jim o decreto da sua abolição.
Este, dócil às correntes, permanece
num catre com aranhas e ratos e
andrajoso, mártir, lavra com o seu sangue
os ditados deles nas paredes do catre, é
fabuloso o mundo dos meninos.
Haverá sempre outras leituras, de resto
a minha carece de humor e esquece
o rio, o dialecto, a jangada do selvagem
e as margens de bufões no Tennessee
dessas aventuras viris a que já cheguei
tarde e nos desenhos animados, em
vez de Sade eu lia a condessa
de Ségur e os Grimm.
Era a história dos irmãos a engordar
na vivenda de chocolate, que sim
podia ter sido inventada por mim, cheguei
a convencer-me – não sabia do livro
e a ausência de prova era suficiente:
nem era crível que tal quantidade de mal
me fosse anterior, o mundo era ileso
de Herodes, do abandono e culpa
que só
cá dentro se podia produzir
entende, a catequese era contígua
ao seminário dos Olivais.
Aí havia a gruta do gorila
onde se tinham passado coisas
de que os pais não sabiam, não podiam
livrar-nos e cheirava a mijo no mato
dos arrabaldes, onde ficava uma outra casa:
essa de ruínas, com a chaminé quebrada
de onde saíam fumos e delinquência
e um palhaço maligno, cobarde
como no thriller do Stephen King e tudo
o que eu também inventei mais tarde
para livrar-me do mal que só podia ser
portanto posterior à minha consciência
descomposta por exemplo como os corpos
das noivas de Barba Azul uma a uma
no closet com pés pequenos a dar a dar
o meu teatro de marionetas, o meu
patíbulo de brinquedo, os estribos
e a chave de sangue não lavável
e a escrava Isaura andava nua
pelo meu país da barriga para cima
pendurada a uma árvore, zurzida
por versgata, branca e mansa
de falas, num estilo de cativa a facilitar
a projeção identificativa
com o negativo escuro, subliminar
a balouçar no closet, one little
two little, three
penduradas
uma vez consumado o ballet
das núpcias, os pés
da heroína, que vestia branco
contrariada quando não a chicoteava
da cintura para cima o bruto
Leôncio, como ao negro André—
o fascínio pelos órgãos adivinhados
que os miúdos conhecem
sem atinar no concreto
prazer: um complexo de pecados
nos prédios de subúrbios e senzala.
A minha kriptonite as mãos na cara
e os dedos entreabertos do medo
nos olhos aumentados de lágrimas
vermelhos, lascivos
os lábios pulsando grossos
ao ritmo dos silvos, os flagelos
nos corpos enquadrados pela estaca
e a chibata, como se esta, como
se tudo o que eu inventei os beijasse
como vir a comer um coração
sacrificado à nossa mão, como o imaculado
de Maria, com um espeto de lírio
ou são sebastião lacerado contra o cipreste
tétrico e com as fraldas de linho
à época
ou a gárgula de João Batista na bandeja
gástrica de Salomé
nas pagelas dos avós
quando dormíamos na terra.
A igreja minha madre
e os espinhos inventados por mim
para lavrar a sangue no meu catre
o que escrevo numa esteira
de cravos
volta e meia, portanto
entregava-me a Cristo, do alto
da minha invenção eu achava
que tinha perfil para a coroa
e para o vinagre, para o Gólgota
só não entendia porque morria
o ladrão do lado miserável se
eu o tinha salvo, não sabia
de resto, avisou-me o meu irmão
enquanto eu lhe dava a outra face
que já tinha tentado, não se conseguia
não era pera doce, não sei como
abria-se a janela do prédio, Cristo
tinha primos, havia o super-homem
e a kriptonite e os meus pés
mínimos, entende, eu achava
que me podia pendurar
Mark Twain era para meninos.
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