Wednesday, December 31, 2008

eu sabia que já tinha lido uma coisa parecida

"A Avenida Almirante Reis, eternamente cinzenta, pluviosa e triste ao sol de Julho, balizada alternadamente por ardinas e inválidos, trotava na direcção do Tejo entre duas gengivas de prédios cariados, como um cavalheiro apertado em sapatos novos para a paragem do eléctrico. Industriais de olho alerta impingiam relógios de contrabando nas esplanadas a que os engraxadores, acocorados em penicos de tábuas, conferiam uma dimensão insólita de creche. Em cafés gigantescos como piscinas vazias desempregados solitários aguardavam o Juízo Derradeiro em frente de galões imemoriais e de torradas terciárias, congelados em atitudes de espera. Salões de cabeleireiro habitados de baratas propunham às donas de casa em mal de imaginação soluções capilares imprevistas, a que retrosarias poeirentas dariam o toque final de soutiens de renda, mosquiteiros torácicos capazes de rejuvenescerem de erecções formidáveis vinte e cinco anos de resignação conjugal."

António Lobo Antunes, Memória de Elefante
.

Tuesday, December 30, 2008

Almirante Reis

A nossa solidão é esta avenida decotada,
do passeio do acaso, do furtivo e escancarado,
artéria tantas vezes paralela ao coração,
onde ninguém serve a nenhuma arquitectura;
onde sobe a miséria do terminal do eléctrico
até à igreja fronteira à sopa dos pobres,
temporárias sentinelas armando cartões
nas fachadas das lojas, trastes e artigos
de ocasião (apanham-nos de dia noivos
investindo num projecto de família).

O nosso é este meio de solidão, que se carrega
de qualquer coisa que não é bem perpétua
atmosfera de névoa, nem sujidade, que também
é terna, pena suspensa (corvos de Lisboa, naus
gastas no chão), saudade, por que não, sentimento
de povo sem pátria em que descreio; crer
creio
nisto que na indigência e vício coexiste a gente
dá-se e da carência faz-se uma disciplina às claras
e por muito pouco desprende-se quase nada
que se tem
.

Monday, December 29, 2008

ODES de Ana Salomé (Canto Escuro, 2008)

a uma existência de papel

e eis que é chegado o fim
como uma pedra que se suspendeu
e depois pousou no chão vencida
vencida pelo cansaço de querer mais
do que uma simples pedra pode querer
esta pedra, que josé ferreira gomes conhecia,
que ele próprio atirou contra a noite e o dia
no jardim que era, afinal, todos os jardins
que ele próprio comeu, depois do pódio do chão,
como uma sombra demasiado sombria
que ele próprio supôs como a palavra.
e eis que me dou conta que existo rodeada
de palavras e de pedras caídas - ou anjos em
falência.
não sou homem, e a uma mulher é mais difícil
viver só com as palavras. e quando digo só é só que digo.
esta vida a meio-gás, o JL no braço,
a mesa na esplanada de inverno e o cigarro, até esse,
a apagar-se até ao desnorte.
todo este frio de olhar em volta
e não ver a estrela nem a graça
de não ter uma única casa - uma única casa - branca
nas ruas desta ferida.
de olhar em volta, o centro comercial - o centro,
como esta palavra poderia ser bela - a trazer-me
os outros como uma paisagem sobre as folhas do jornal.
no centro comercial há tantos casais
que se amam como um padrão de pombos - ali, agora mesmo, um homem de bigode
e uma mulher de seios descaídos -
também os seios caem como as pedras suspensas - também os seios -
amam-se com a facilidade com que viro
as páginas do jornal e abandono os temas desisteressantes.
meu deus, faz com que eu tenha os seios descaídos
e dá-me um homem de bigode que me leve a passear no centro comercial.
não quero um amor maior do que o amor possível,
a lição dos livros - esta inqueitação - esta grande inquietação -
cansei-me de amar rodeada de palavras
e de vento e de nada
alguém que não vem mais.
levanto-me da mesa do café,
puxo a gola do casaco para cima,
prendo o cabelo
e vou para onde não sei.

Ana Salomé

Sunday, December 21, 2008

Saudando a luz que se alonga



Augusto de Campos, "Sol de Maiakóvski" (1980-1993)

Wednesday, December 17, 2008

O raio do pombo

já chocou três vezes, hoje, contra a minha janela. O gato está há horas de bigodes afiados e focinho húmido colado ao vidro. Só por causa disto, até deixo aqui um inédito que eu acho que é do Fradique Mendes - quem quiser confirmar, vá ao espólio de Jaime Batalha Reis, na Biblioteca Nacional, caixa 55, documentos 15.2 e 15.3. Entre parêntesis rectos, coisas que não se percebem bem na caligrafia. Podem comparar à vontade com o Corvo do Poe. Ou com o Gato Preto. A mim não me rala nada. Sou só um bocadinho supersticiosa.

Quando virem minha pomba pelos campos pela eira
Negra, negra como um corvo azulada e luzidia
Não lhe atirem, não a matem, não a prendam que seria
Para mim ficar dormindo sem a minha companheira.

Há três anos e três dias que eu com ela vivo só
Há três anos e três dias que indo ver nascer o Sol
Ao findar duma elegia do nocturno rouxinol
Uma pomba na janela veio olhar-me a mim com dó.

Eu não sei se foi tristeza se prazer o que senti
Sei que os olhos negros tristes, compassivos, dolorosos
Ao fixarem-se nos meus doloridos lacrimosos
Me lembraram as saudades dum passado que perdi.

Costumava eu pela noite na janela do nascente
Esperar que a luz viesse colorir de azul o Céu
De maneira que no dia em que a pomba m’apareceu
Cuidei ser da noite a imagem junto a mim sempre presente.

Desde então que a pomba negra nunca mais, na natureza
[Sombra vã duma] saudade me deixou um só instante
[Vai às vezes] pelos campos a voar sinistra errante
Para vir junto da casa considerar-me com tristeza.

Monday, December 15, 2008

Solicitações

Por enquanto não custa praticar o limbo
e ficar quase num estado larvar assim
nem em alto nem em baixo
como tão cândido escreveste
com erros ortográficos que guardo para mim
e me fazem lembrar que não és rei de Ítaca
e talvez nem voltes cá, também

me fazem lembrar quando me chamas brava
embora agora não ouça:
para estar suspensa é preciso não usar os sentidos,
especialmente os da cabeça
que são eles que avisam quando é tempo de doerem os músculos
e de os membros inferiores terem formigueiros
e de ser preciso correr sangue antes de se porem roxos,

mas por enquanto não custa;
é tão agradável, desde que não pense muito
qual de nós vai ser primeiro a ficar frouxo
e cada noite faço versos para não ter outros
compromissos além de urdir o nosso enlace.
Se fosse hoje Penélope também
preferia dormir com barbitúricos
.

Sunday, December 14, 2008

Uma falha no programa

Estou à espera mais uma vez
de ser gentilmente votada
ao meu lugar de amante
intensa, grata e gozada
e é melhor que fique assim,

nem me queixo, inconveniente
sou para todo o protocolo
e além disso algo demente;
tenha embora certo interesse
falta-me um tudo-nada, charme

e desprendimento – aliás,
agradeço que entre portas
me deixem dedicar mil vezes,
no meio dos uivos e lodos,
a minha vulnerabilidade –

– mas se por acaso, só desta,
for mesmo da minha cabeça
e acontecer de outro modo,
fico de tal forma contente
que hei-de agradar-vos a todos
.

Para não enganar ninguém

NegritoAqui
uma crítica severa e provavelmente certeira às traduções de Daniel Ladinksy que tenho vindo a utilizar e também a alterar. Embora reste a hipótese de neste caso - só neste - o excesso de zelo ser contraproducente para o trabalho de amor, e de se calhar não devermos mesmo ser assim tão religiosos
.

Saturday, December 13, 2008

Hafiz (em loop)

PEQUENINOS DEUSES

Dizem alguns deuses, os pequeninos,
“Eu não estou aqui, nos teus lábios vibrantes, húmidos
Que precisam de banhar-se sobre
A praia dourada de um
Corpo nu.”

Dizem alguns deuses, “Eu não sou
O anseio em ferida da alma não correspondida;
Eu não sou a face afogueada
De cada estrela e
Planeta –

Eu não sou o Regente aprovador
Dessas secreções preciosas que podem destilar
Todo o espírito numa jóia perfeita e cintilante, nem que por
Um só instante;
Nem resido em cada monte de estrume quente e doce
Que brota da gratuitidade
Da Terra.”

Dizem alguns deuses, os que temos de enforcar,
“A tua boca não foi feita para conhecer a Sua,
O amor não nasceu para consumir
Os reinos
Luminosos.”

Meus queridos,
Cuidado com esses deuses que os homens assustados
Criam

Para trazer consolo e anestesia
Aos seus tristes
Dias.

*

UMA NECESSIDADE PREMENTE

Por

Uma necessidade premente

Estamos de mãos dadas

E escalamos.

Não amar é largar.

Ouçam,

Por aqui o terreno

É demasiado

Movediço

Para isso.

*

DOIS CHARCOS À CONVERSA

Choveu durante a noite
E formaram-se dois charcos no escuro
E puseram-se à conversa.
Disse um,

“É tão agradável estar finalmente nesta terra,
E encontrar-te também,

Mas o que irá acontecer quando
O Sol resplandecente vier
E nos transformar outra vez em espírito?”

Meus queridos,
Aproveitem a noite o mais que puderem.

Para quê perturbar o coração com o voo,
Quando ainda agora chegaram
E o coração se vos aquece com tamanhos desejos.
E olhem:

Tantos prados de pêlos macios plantados
Sobre vós.

Para quê perturbarem-se com Deus
Quando Ele se abstém de julgar
E é tão gentil

A menos que sejam santos e íntimos
Do círculo
Do Perfeito Um?

*

AS GRANDES RELIGIÕES

As
Grandes Religiões são os
Navios,

Os Poetas os botes
De salvação

Todas as pessoas sãs que conheço saltaram
Borda fora.

Isso é bom para o negócio, não
Hafiz?

*

PEPINOS E PRECES

Todo o dia
A terra brada
“Ui, obrigada.”

Um ui tão exuberante
Que começa a atirar
Coisas.

Como se Deus passasse num desfile a incentivar
Os arruaceiros
Com aquele tão lindo aspecto –
Que atrai como mel uma avalanche inteira de maníacos!

Gosto desta ideia de atirar coisas a Deus
E especialmente – o fazer de nós arruaceiros!

Portanto, assim que salto da cama
Começo a encher grandes sacos
Com sapatos velhos, pepinos
E
Preces

Para o próximo
Evento de consagração

Aberto-a-todos
E sabe Deus
A que mais.

*

OS LINDOS JOGOS DO AMOR

Dizem sensatamente os jovens amantes,

“Vamos experimentar este ângulo,
Talvez suceda algo de maravilhoso,

Talvez três sóis e duas luas
Rolem
De um esconderijo no corpo
Que a nossa paixão ainda tem de acender.”

Dizem os velhos amantes,
“Podemos fazer mais uma vez,
Que tal desta longitude
E latitude –

Balouçando de uma corda atada ao tecto,

Talvez uma parte de Deus
Se esconda ainda num canto do nosso coração
Que o nosso afecto ainda tem de revelar.”

Conclusão:

Não deixem nunca de brincar
A estes lindos
Jogos
Do Amor.

*

OS SUBÚRBIOS

Só nos podemos
Queixar

Quando vivemos nos subúrbios
De Deus.

*

ÀS VEZES DIGO A UM POEMA

Às vezes digo a um poema,

“Agora não,
Não vês que estou a tomar banho!”

Mas o poema normalmente não quer saber
E replica,

“Paciência, Hafiz,
Nada de preguiça –

Prometeste a Deus que davas uma ajuda

E Ele acaba de inventar
Esta nova canção.”

Às vezes digo a um poema,

“Não tenho forças
Para espremer mais uma gota
Do Sol.”

E não é raro o poema
Responder

Subindo para a mesa de um bar;

Depois, levanta a saia, pisca o olho,
Fazendo com que todo o céu
Desabe.

*

DEIXA LÁ A RELIGIÃO

O que é que
Os tristes têm
Em comum?

Parece que
Ergueram um altar
Ao passado.

E vão lá muitas vezes,
E fazem um estranho lamento e
Culto.

Onde começa a
Felicidade?

Onde deixamos
De ser assim

Tão

Religiosos.

*

PROCURAR MELHOR EMPREGO

Se já

Está provado

Que tamanha

preocupação

É negócio

Que não rende,

Porque

Não

Procurar

Melhor

Emprego?

*

IMAGINO QUE AGORA POR MUITO TEMPO

Aconteceu
Outra vez
Ontem
À Noite:

O Amor
Rebentou a rolha de si mesmo –
Espalhou os meus miolos
Pelo
Céu.

Imagino que agora por muito tempo
Algo de mim
Há-de parecer

Que cai como
Estrelas.

Hafiz (um excerto)

O medo é o quarto mais ordinário da casa.
Eu gostava que vivesses em melhores condições
.

Thursday, December 11, 2008

Põe-se a vida

Onde
Deus deita Seu olho
Põe-se a vida
A aplaudir.

Inúmeras
Criaturas pegam nos instrumentos
E juntam-se à
Canção

Onde amor se faz conhecer
Contra outro
Corpo

Põe-se
A jóia no olho
A

Dançar.

Hafiz (c. 1320-1389) – tradução indirecta e liberta a partir de Daniel Ladinsky, The Gift, Penguin Compass, Nova Iorque, 1999

Saturday, December 06, 2008

Ainda amor me alui, friável carapaça

A mim que me cuidava há muito tempo seca
Ó tão íntima bênção – que a não esqueça
E a conserve – após o acto claro, após
O imenso espanto exacto, me fecunde

Esta miséria funda, e assim desfeita,
Guardando, grata, o quanto ampla fui

Que faço só poema onde haja dentro carne
E corpos prefiro que cubram como casas
Melhor ainda tendas, asilos fugazes
Um ou dois furos, ventos, humidade, dádivas
.

Monday, November 24, 2008

Nem sempre há novidade, mas hoje até há publicidade


Para os três leitores que ainda seguem este blogue, vão mas é já a correr à Praça das Flores.

Tuesday, November 04, 2008

Leminski, poeta de Curitiba (1944-1989)


podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano
.

Friday, October 10, 2008

Aniversário (II)

Passou o dia desta vez sem que lembrasse
que teríamos feito anos. Não faz mal
tanto assim que as efemérides no geral
acendem o rancor, e já nos traz cansaço

sofrer das vezes todas, e mais depois
de partir o que foi comum; o desacato
porque o outro levou consigo o retrato
tirado por um enquanto eram os dois

– éramos –

nós. Ora aí está, dispense-se a poesia
de flexões de sintaxe e da narrativa. Haja
a sensatez de não querer decifrar nada

onde sempre de toda a forma fraqueja a
claridade. Pôs-se o luto, recolha cada
um o fumo do braço, o que acha que sentia
.

Wednesday, October 08, 2008

O Coronel

O que ouviram dizer é verdade. Fui à casa dele.
A sua mulher trouxe uma bandeja com café e açúcar. A sua
filha limava as unhas, o seu filho tinha ido sair à
noite. Havia jornais do dia, cães de estimação, uma pistola
na almofada ao lado dele. Nua a lua balançava no
seu negro estendal sobre a casa. Na televisão
dava uma série de polícias. Em inglês. Havia garrafas
partidas incrustadas nas paredes pela casa toda para
raspar as rótulas das pernas de um homem ou
retalhar-lhe as mãos. Nas janelas havia grades
como nas mercearias onde se vendem bebidas. Jantámos,
costeleta de borrego, bom vinho, na mesa um sino de ouro para
chamar a criada. A criada trouxe mangas verdes,
sal, um pão especial. Perguntaram-me se gostava
do país. Houve um breve intervalo de publicidade em
espanhol. A mulher levantou a mesa toda. Fez-se
conversa sobre as dificuldades da governação. O
papagaio disse olá no terraço. O coronel
mandou-o calar, e empurrou a mesa para
sair. O meu amigo disse-me com o olhar: tu não
digas nada. O coronel voltou com um saco do
supermercado. Despejou muitas orelhas humanas sobre
a mesa. Pareciam metades de alperces secos. Não
há outra maneira de dizer isto. Pegou numa delas,
sacudiu-a à frente das nossas caras, deitou-a
para um copo de água. Aí ganhou vida. Estou farto
de brincadeiras, disse ele. Quanto aos direitos seja
de quem for, digam lá na vossa terra que se vão
f.... Varreu com o braço as orelhas para o chão e ergueu
ao ar o resto do vinho. Há-de servir-lhe para a
poesia, não? Perguntou. Algumas das orelhas no chão
apanharam aquele fio de voz. Algumas das orelhas no
chão estavam coladas à terra.

Carolyn Forché
.

Thursday, October 02, 2008

Tuesday, September 30, 2008

uma sapateira gigante



A mãe tinha saído. Eu tinha ficado na casa velha com a Mariana e a mãe dela, a Xana. Havia uma sapateira gigante que cuspia fogo e andava a destruir as casas todas mas não chegou a destruir a nossa. A Xana estava sempre a ir ver quando é que a sapateira cuspia fogo. O pai estava sempre a dormir. A sapateira não destruiu a nossa casa, mas ainda deitou fogo ao quarto da mãe. Só que não fazia mal porque a mãe estava noutro país. Era desse país, aliás, que tinha saído a sapateira gigante. Eu ainda quero comer uma sapateira, desde que não cuspa fogo
.

Friday, September 26, 2008

Melancolia

A falta que me fazem os teus postais
.

Friday, September 19, 2008

uma paciência de louca


– Mas, seja como for, o que faz um amor sem trajecto?

– Transforma-se noutra coisa, noutra coisa pesada ou acutilante que se traz cá dentro e se embrulha com a nossa própria matéria até deixar de doer.

(Iris Murdoch, A Severed Head)
.

Thursday, September 18, 2008

Manel, Manel não me deixes aqui


O AZUL (L'AZUR)



Do Azul infinito a plácida ironia
Estupefaz, bela indolente como as flores,
O poeta incapaz que o génio repudia
Através de um deserto árido de dores.

Esquivo, fechando os olhos, sinto-o observando,
Com a intensidade dum pesar demente
Minh’alma vazia; onde fugir? Que nefanda
Noite lançar, estilhas, contra seu contempto?

Deitai, ó densas névoas, as cinzas monótonas
Com andrajos de brumas pelo firmamento
Para afogar os lívidos pauis de Outono
E edificai um tecto mudo e envolvente!

E vai-te, tu, dos lodos de Letes, e traz,
Na volta, os limos e os pálidos bambus,
Caro Tédio, para vedar com mão tenaz
Os buracos que as aves abrem no céu cru.

E mais! Que sem descanso as tristes chaminés
Fumeguem, que uma urna esparsa de fuligem
Soterre no terror do seu obscuro grés
O ocaso que eclipsa de ouro a vertigem!

Está morto o Céu! A ti acorro, ó matéria!
Faz esquecer o fero Ideal e o Pecado
A este mártir que partilha a liteira
Onde o alegre gado humano jaz deitado.

Que quero – pois enfim meu cérebro de areia,
Tal balde de verniz vazado ao pé dum muro,
Não tem mais arte de avivar a fraca ideia –
Bocejar plangente ante um trespasse escuro.

Em vão! O azul triunfa e escuto-o nos sinos
A cantar. Por minh’alma! A voz que toma assusta
Ainda mais com sua glória escarninha,
E o metal vibra e toca hinos de angelus!

Rola através da bruma antiga e trespassa
A tua dor nativa como espada rútila:
Onde fugir nesta revolta amarga e lassa?
Eis-me assombrado: Azul! Azul! Azul! Azul!

Stéphane Mallarmé

A foto vem daqui.
.

Wednesday, September 17, 2008

Versão de Moon Chung-hee (n. 1947, Coreia)


a partir do inglês de Windflower, trad. Wolhee Choe e Robert E. Hawks

A ARANHA

Um corpo mais pequeno que uma lasca de pedra
defrontando o vazio infinito
desenrola de um coração apertado
sedoso fio que de outro modo se não concebe
nem pelo Sol majestoso.

Sem confusão
costura o vazio

de onde emerge uma teia magnífica.
Ressoa no seu frémito
o som primitivo de uma viola.

Asas de prata presas
esvoaçam no Sol do meio-dia.

Onde vos perdestes?

Nesta terra

onde rosas e criaturinhas brincam
testemunho
Deus.
.

Monday, September 15, 2008

Declaração de Intenções

Para aqueles que insistem diluir
isto que escrevo aquilo que eu vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

À língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.

Fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita

um sólido balança, ou se levita.
Então sobre o poema, o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz.
.

O Melhor dos Açores


se tu viesses desta vez é que eu não fazia perguntas nem poemas: já tinha aceso o bule para que as bocas mudas reservassem o mesmo aroma e se soltassem só com fins obscenos.
.

Charles Simic

O blog do nosso quadro de honra está a publicar poemas de Charles Simic (n. 1938). Esta manhã apeteceu-me tentar este em português.

UM LIVRO CHEIO DE BONECOS

O Pai estudava teologia por correspondência
E era a época dos exames.
A mãe tricotava. Eu sentava-me calmamente
Com um livro cheio de bonecos. A noite caía.
As minhas mãos arrefeciam a tocar as caras
Dos reis e rainhas mortos.

Havia uma gabardina preta
No quarto de cima
A abanar do tecto,
Mas que estava ali a fazer?
As longas agulhas da mãe faziam cruzes lestas
Que eram pretas
Como então o interior do meu coração.

Voltava as páginas e soavam a asas.
“A alma é um pássaro”, dissera ele.
No meu livro cheio de bonecos
Eclodia uma batalha: lanças e espadas
Faziam uma espécie de floresta de Inverno
Em cujos ramos o meu coração se picava e sangrava.
.

Monday, September 01, 2008

Rentrée

Este é da madrugada de hoje. Parte vem da Hélia Correia. Demorou meses.

FEITICISMO

É verdade que quando eu contigo
me inclinava o mundo por instantes
recuava. Entreguei-me a ti aberta
como nunca porque querias ver-me,
e já então pelos teus olhos eu

gozava. Quando, pois, te evaporaste
com uma assombrosa fixidez
mandei o espírito buscar-te o corpo
e amar nele e tornar-se um outro
que atravessava as tuas mulheres.

Investi a crueza que evitei
connosco: saciei-me assim de início
marcando até algumas, contra
a evidência de que entre dois
o mais violento não tem testemunhas.

Tanto me apliquei que cheguei a crer
que tu retribuías. Iludi-me
na complacência de, tomando outros,
me devolver também a ti. Porém,
foi-me custando mais a cada vez

voltar. Mergulhei, esqueci aos poucos
onde, entre este e aquele, arquejei
no engodo que chamei de nosso amor;
e raro sinto que ouça tua boca
resfolegar por sobre minha pele.
.

Sunday, August 31, 2008

201

reparo que o post abaixo foi o 200, e calhou ser um texto do tempo em que ainda não havia blogosfera (ou quase, o short de blog apareceu, segundo a wikipédia, em Abril ou Maio de 1999). Este é mais um texto do baú, que a memória do computador velho diz ser de Janeiro de 2000. A mim parece-me anterior. Mas foi retocado.

Parceria Breve

Já vieram as novas listas telefónicas.
O teu número é impossível de encontrar.
A tua família, creio, mudou de cidade.
Espero que lhes chegue a demorada alegria
sem que a tua memória a venha diluir.

Conheci-te num tempo tudo menos inocente
com ferozes sobressaltos de ternura. Tu já
perdido salvaste-me a adolescência
e a vida porventura. Parecias um índio
farejando os sulcos e os líquidos humores.

É sabido que os magnetes viajam velozes
atraídos pela circulação dos golfos sanguíneos.
Os cabelos cobriam-me no teu colo a cabeça
e a tua mão respirava sobre o meu desejo
num acto solene de xamanismo.

Depois que nos mentiste morreste sem cartas
com uma agulha erecta a prumo sobre a veia.
Recordo-nos, amor primeiro, boiávamos
ao mar um lugre o céu estrelas que eram ímanes
que singravam ondas pólos do nosso afecto.
.

Saturday, August 30, 2008

Primavera dos Simples

A casa está toda aberta
A porta escancarada
As portadas de par em par

Corre uma brisa de nascente a poente
e o nosso amor é essa aragem
que atravessa através dos

longos dilúvios longos do mês de Março

(achei este no computador velho, com data de 28 de Março de 1999)
.

Tuesday, July 08, 2008

segurança

quando um arrisca com outro

Sunday, July 06, 2008

tudo muito bonito, caro

mas porquê então ser ideal de comunicação adivinharmo-nos sem palavras?

Tuesday, June 17, 2008

Mulher ao Mar


foto de Rogério Rôla, quinta do Tio Manel, Sexta-feira

Saturday, June 14, 2008

incarnation exceptée

por mais que se diga, com a impossível excepção de O Princípio e Jesus, as palavras não podem tornar ninguém presente.

Pretérito Imperfeito

Talvez me seja difícil
chamar ali
completamente.
Connosco
tu estás lá
e eu estou lá
tanto o tempo
que durava

(A tradução disto é impossível em inglês. Pelo que o sentimento que expressa talvez seja linguísticamente circunscrito. Ou talvez seja apenas a expressão do sentimento que o é. De qualquer forma, a língua será um modificador do amor, por entre as variáveis de tempo e lugar. Outra alternativa: a língua como forma apriorística do sexo. O amor como nome que a língua dá ao sexo. Mas nem todo o sexo nem todo o amor. De toda a maneira, não me faz sentir melhor. Serei eu apenas a pensar mal. Ou a bater mal.)

Tuesday, June 10, 2008

Verão


Convém não esquecer. Mais as palavras de calor que ainda se correspondem.

solidão

Não há em mim qualquer talento original. O que levo ao papel é pueril, colegial. Preciso de ver pelos olhos do outro. Estou quase cega e escrevo ainda para tocar.

Monday, June 09, 2008

Transportes

É possível que muitas vezes a qualidade dos afectos se possa aferir pela capacidade de imaginarmos viagens com outras pessoas. Dependendo talvez de se aqueles com quem queremos viajar são os mesmos com quem queremos ficar. Esta variável não anula o valor da partilha e do percurso, que é intrínseco.

Sunday, June 08, 2008

Fortune Cookie


Espera pelo melhor. O pior vem por si só.

Saturday, May 31, 2008

rios


Nesta última semana, ocuparam-me os rios, como este e este.
Sempre me achei mais do mar, mas talvez mudem as correntes. O rio é o espaço selvagem mas também das pessoas que nos traz ou para quem somos arrastadas. O rio atravessa-se. Não faria sentido nenhum haver um mar do esquecimento ou um mar da morte, ou barqueiros para nos orientarem ou iludirem entre as duas margens. Rio é comércio entre nós. Afinal, foi no último Dezembro que o meu guia, no Vale Sagrado dos Incas, me baptizou no Vilcanota, muito perto do preciso sítio que se vê na imagem.

primeiro dia de menstruação

felizmente é Sábado
e não há ninguém
em roda de mim
de barriga moída
e macerados rins
posso tirar o dia
para verter o sangue
e soletrar poesia.

Sunday, May 11, 2008

recordo às vezes que me dizem alguns versos

CÂNTAROS

Nas longas mesas do tempo
bebem os cântaros de Deus.
Bebem até ao fim os olhos dos que vêem e os olhos dos cegos,
os corações das sombras dominantes,
as faces ocas da tarde.
São os mais poderosos bebedores:
levam à boca o vazio e o cheio
e não transbordam como tu ou eu.

Paul Celan
.
Agora muitas vezes só me toco
e muito mais me basta que embalar-me
em cartonada aspereza de palavras
com quanto me castiga este meu corpo
à falta de criar eu morro um pouco
e já a nada chego se a mão estendo
aí escurece insisto por instantes
só onde contraio me desloco
até ninguém me amar. O que me aquece
me seca e envergonha tudo nu
me cerca – tão voraz eu fui das chamas
que agora me consumo, não inflamo
ou quase não, nem tudo,
onde hajas tu –
espia estou aberta enternece-te

.

ainda


bem

Friday, April 25, 2008

A Reflexão dos Cravos



Hoje, no Rossio, com agradecimento ao João e ao Ricardo, que tiram fotos, estas e outras, a visitar.

Sunday, April 20, 2008

estou farta

do erro ortográfico ali de baixo. Escreve-se manjericão. Não me perguntem porquê.

Sunday, February 24, 2008

Chat

Em Mercúrio, Sexta-feira, a sonda
detectou duas crateras de auréolas
sombrias. Apresentam ambas bordos
quase intactos e muros de socalcos

segundo especifica o endereço
http://messenger.jhuapl.edu/
(anoto e espero que o poema
seja eterno e o link não). Cliquei

para ampliar a imagem, e dentro
vi pequeninas covas circulares
como as que na areia faz a chuva
ou nas fontes as moedas dos desejos.

Também por via Messenger te encontro
e troco novidades, mais veloz
do que a luz, mais ágil o gracejo
do que o próprio pensamento, faísca

o espaço – onde chegamos, sem risco
já de nos tocarmos; os dois estamos
cheios de buracos – e nem é grave
se soubermos flutuar. Em tudo isto

ainda há algo como um halo fundo
e um radar que é como água gotejando
por degraus, que inquieta mas seduz
e nos deixa sombrios intactos sós.

Saturday, February 23, 2008

sex symbol bis



Ainda por cima aposto que gosta de encher casas de flores e de deixar passar condutores no trânsito. Infelizmente, não posso garantir o mesmo sobre Brad Pitt.

Óscares: Ivo Canelas



Já é tempo de em Portugal também se fazerem homens.

Monday, February 18, 2008

o primeiro pássaro que namora

acabo de ouvi-lo, aflito, ansioso, do lado de lá do vidro do terraço, e sei que não tarda vou sentir-lhe a falta. Hoje também recebi mais um sensível poema, e jantei com reencontro falado furiosa e entusiasticamente em estrangeiro. Afortunada eu. Quando tiver mais generosidade, enceto um diário.

Monday, February 04, 2008

Sunday, January 27, 2008

poema de Rogério Rôla para mim

(quando se tem amigos que nos escrevem assim até se fica gaga)


DESCOLAGEM


Como eu gostava de me elevar

na ponta dos pés quando me abraçavas

e pendurar-me ao teu pescoço.



Sorvia -te os olhos a voz e os lábios

e a tua nuca voava mais alto

como aeronave que toma outro rumo.



Eu ia feliz seguindo embalada

a directriz da tua viagem

sempre pendurada ao teu pescoço.



Os calcanhares já não tocam o solo

cruzo a estratosfera o ar rarefeito

pendurada e rígida ao teu pescoço.


Rogério Rôla

Saturday, January 26, 2008

mangericão

















se este blog tivesse cheiro cheirava ao que cheira o frigorífico com o molho que comprei

msg in a bottle: Ângela Marques



preocupa-me qd te escapas
labirinto espuma

Friday, January 25, 2008

incipit

para aqueles que insistem iludir
aquilo que vivo isto que escrevo é
mesmo assim

so tender

ao ponto
às vezes
de ser
tão duro
não mais
derretermos

Wednesday, January 16, 2008

Ressabiadas




Talvez lá no fundo acredite
que os seres humanos são todos sensivelmente
os mesmos em toda a parte, mas então
necessariamente as mulheres são mais.
Costumes que frequentamos:
o arame da loiça, os panos dos pratos, os ganchos e as linhas
do estendal, a vinha-de-alhos, o fogão,
o alguidar, guardamos os restos, torcemos
os trapos, os nossos recados, os nossos sacos,
os nossos ovos.

Certamente que eles, em grande maioria,
escanhoam os queixos e gostam
de arejar, mas são médicos, polícias,
engraxadores, economistas
e os vários naipes da banda filarmónica
nós somos todas domésticas, mesmo

assim não nos entendemos, e
nem serve escrever isto
que o maniqueísmo em traços largos
resvala na aldrabice, e a poesia
vem dos anjos já se sabe
carecidos de sexo.

E aliás que me rala a mim,
levo a minha vida e tenho o amor
de que não desconfio
e se consolo o cio e a fome
decerto falo de cor,
nem é por isso que me doem os calos
mas por causa dos bicos
dos vossos saltos
no desnível dos soalhos, refinadas
galdérias que se tomam a sério,
pestanas certeiras e beiços
que brilham, línguas que estalam
e mamas que chispam

corada invoco a imagem mal tirada
da fêmea recortada ao macho que a conforma;
sei que desminto qualquer laço comunal
e seja como for ninguém pediu
o meu palpite, pelo que não me habilito
e me desquito, acinte
mudo, era eu

quem estava mal.

Sunday, January 06, 2008

Confio ainda



se sorrir até o coração ficar tão grande
que eu abra inteiramente os braços
e queira e deixe partir

Leitura de Janeiro

Saturday, January 05, 2008

Mosteiro de Odivelas

Oprimidas pela virgindade e pela pedra esculpida
da Rainha Santa, percorríamos a emparedada adolescência

e, como rezava a lenda, no nosso colo
o pão da merenda em rosas se mudava;
com elas engrinaldávamos o júbilo imperfeito
que o pudor cerceava.

Como lira a estridência dos nossos corpos
de sombrias raparigas, na argila mergulhávamos
as mãos que dilatavam as primícias do Verão
e éramos inocentes conquanto experimentadas
no ofício da entrega e da sujeição.

Iludindo as harpias que nos espiavam,
a amiga e eu trocávamos de mãos dadas
junto às grades interditas palavras,
boca a boca nos enlevávamos
no atrito do canto das cigarras.

Wednesday, January 02, 2008

O BRANCO DO CORPO

Sobre as paredes celestes do quarto
Um esboço de canábis a branco
As lágrimas a branco deslizando sob as lentes
O estômago a branco, retorcendo-se
O coração branqueado, vais deixar-me
Porque nunca sorrimos
Como um casal feliz.

Eu arrancava-te todo o branco do corpo
Para te ensinar a ferida.

Como sempre sento-me à beira da cama
O rumor de uma palavra não dita destroça tudo
Chama-me, morde-me, chora um pouco mais
Vem
Apesar de tudo não sei o que tenho e quero
Acariciar-te.

Rocío Silva Santisteban (n. Lima, 1963) - de Mariposa Negra, 1993

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